quarta-feira, 24 de junho de 2015

Da Nossa Morte Nos Outros

Ainda me fala de boca cheia, a pedir futuro, agora, quando me diz olá e me pergunta
Como estou depois de tantos anos, apetece-me dizer-lhe que estou igual apesar
Do cansaço e que não lhe invejo nada que não seja meu, tento lembrar-me do sabor
Que tinha nos lábios, sei que não era a tabaco, não me lembro do que a língua me disse,
O beijo de manhã a sono, alguns sentem-se como um sonho muito quente que seca antes
De se acordar, ainda te lembras, pergunto-lhe na pausa de um silêncio, com os dedos
Pendentes e nos dentes os seu pescoço branco em forma de memória, não me esqueci,
Só tudo confuso, espalhado pelos anos onde não pertence, eu a fingir que também,
Apesar dos números, uma festa, aquela vez, a última vez esta e aquela, se calhar nem Lua,
Ou nuvens em vez de estrelas, mas o teu cabelo a enrolar-se na língua que procurava
Apagar-se no fogo da outra, quando te despedes, sei que fica por dizer que nunca acabaria
A fome entre nós e que estava tudo condenado à distância e à saudade envergonhada
Pela luz da idade agora, sempre estivemos bem um para o outro no excesso em doses
Moderadas, sem intimidades caseiras, só fogo e carne, onde calhava, porque o mundo
Só nós quando nós, não faz mal que te esqueças um bocadinho, sabes que a carne se lembra.

Lahti

23.06.2015


João Bosco da Silva
(A)Parições

“a quantidade de criaturas que a nossa destruição vai destruindo uma a uma”
António Lobo Antunes

Nascemos em tantos lugares, de tantas formas, para morrer apenas uma definitiva vez,
Num último lugar, nascemos num primeiro beijo, de um olhar espelhado,
Nascemos quando entramos pela primeira vez no desejo de alguém, nascemos na mão
Que aperta a nossa pela primeira vez, nascemos num mergulho no espelho,
Num garfo cheio e estranho que nos explode na língua, nascemos nas asas de uma gaivota
De água doce que nos persegue até de madrugada numa noite branca, nascemos na timidez
Que se ultrapassa num salto e numa gargalhada quase louca, nascemos na queda da pele
Queimada por um Sol equatorial ou nas gotas inesperadas do suor Árctico de uma pele dourada,
Nascemos no gole lento e na sua descida apressada, no calor que se dissipa em nós,
Nascemos no céu de Verão à noite, entre as estrelas no espaço vazio entre a ilusão e o sonho,
Nascemos a cada momento que esquecemos, a cada palavra que nos salva e poderá ser
Sempre a última, este é o útero que nos gera, onde fermentamos, amadurecemos
E amargámos, é o teu berço e todas as faces são a tua, todas as camas a tua,
Todas as portas são apenas um nome, outro nome e outra história, o mesmo fim.

Savonlinna

22.06.2015


João Bosco da Silva