quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Carta Da Sibéria

Avô, são muitos os rios que desaguam no lago Baikal,
Sim, o mesmo nome que a tua caçadeira soviética,
Terror dos coelhos e lebres dos montes trasmontanos,
Essa mesma que me tombou aos cinco com o coice,
Quando disparava contra o silvado desde a varanda,
Até a mula se deve ter assustado com a choradeira,
Agora não choro tanto, pelo menos não se vê, ou é seco,
Mas às vezes estou muito calado a olhar pela janela e tu não estás,
Ou estás, num lago coberto de nuvens para onde todos os rios
Convergem, e é aí que disparo e caio, mas só a tinta corre
E congela, mas por baixo a água continua a correr
Até ao lago Baikal, que uma vez uns poucos fugidos
De um campo siberiano, contornaram, alguns ficaram por lá,
Um dia o nosso sangue voltará a ser a mesma água,
Até lá, enquanto se foge da noite, escrevo-te estas palavras.

Sibéria

11/11/2015

João Bosco da Silva
Cinzentos São Os Outros

Os dias cinzentos não são tristes, triste é a cor da solidão rodeada por
Multidões de ilhas, afogando-se nas suas amarguras e medos,
Engasgando-se em sonhos inúteis e segundos estéreis tornados
Em avalanches de vazios, os dias cinzentos não são tristes e se
O inferno é cinzento, não é das nuvens, da neblina eterna,
Mas das caras que esperam, como num purgatório,
Que lhes acendam um sorriso ou a cor dos olhos,
O inferno não pode ser um lugar isolado, frio, para onde te enviam
Como castigo, é preciso alguém, muita gente para se fazer um inferno.

Aldan (sobre)

11.11.2015


João Bosco da Silva
Uma Estrada Para Khabarovsk

Quem terá construído aquela estrada para Khabarovsk, nevada,
Longa e deserta, quem a percorre e que sonhos leva, em direcção
A que pesadelos caminha, terá uma fogueira à espera, algum sorriso,
Uma língua familiar que lhe traga o lar a casa, tudo tão longe
E sempre do mesmo tamanho humano, do mesmo comprimento
Serpenteado até ao mar do esquecimento, que triste será o último
A lembrar, levará com ele todas as mortes para a morte absoluta,
Ainda há muito para andar, muito nome para dar, um longo inverno
Para trazer o próximo verão no coração, entretanto, engulo mais um gole
De café quente e regresso à distância real dos olhos próximos
E procuro nas nuvens uma mensagem que dê sentido a todos os caminhos.

Khabarovsk (sobre)

11/11/2015


João Bosco da Silva
Sakuradamon

Do cheiro a sangue no metal assassino só ficou uma placa
Em memória do incidente, hoje a presença é toda dos pinheiros
Que os turistas ignoram, voltando os olhos para a imagem em
Segunda mão de écrans, onde um portão em miniatura
Para o centro de uma história tantas vezes reconstruída,
Onde os vencidos são sempre os maus da fita, para as agulhas
Tudo isto é menos que a brisa que as move ou as patas
Da ave que as toca, o mundo, aquele que dizemos ser nosso,
Continua às voltas, enlatado, movido a morte antiga e futura,
O cisne passa e quase parece seguir-nos com os olhos,
Ao menos isso, olhos humanos pouco mais compreenderão.

Tóquio

05/11/2015

João Bosco da Silva
A Companhia Das Sirenes

Terás sempre a companhia das sirenes nas insónias de uma madrugada
Longe de ti mesmo e que bom é caminhar em direcção ao sono
Por entre sonhos adiados e bêbados, rasgados, alcatrão fora, até ao
Isolamento impossível das paredes que vibram a vida vizinha e alheia,
A noite nem se sentiu levantar e a sua queda foi tão suave e tímida,
Como os olhos que realmente ouvem, sem outro interesse além da tua visita,
Porque se mostra tão pouca gente na cidade gigante, onde não há um minuto
Sem a companhia dos que se despedem, tão estranhos quanto tu.

Tóquio

05/11/2015


João Bosco da Silva
Haikus de Café

A estas horas, no mundo
Todas as minhas vitórias
São vencidas.

Viver de verdade
É incomodar
Alguém.

Nas viagens até à
Montanha, o frio
À chegada.

O pagão ama sem
Qualquer pingo de
Água-benta.

A cerveja no bigode
E todos os sonhos
Que se esqueceram.

O Sol que não se
Trouxe, apodrecerá
As uvas.

Não tenhas medo de
Cair, a neve
Espera-te.


O valor que dás
À amizade, torna-te
Indigno dela.

Como as folhas do outono,
Regressam e nunca
São as mesmas.

Enquanto o empregado
Limpa as mesas
Penso no caminho.

Será a última, mas
Nunca será a
Última vez.

A vida quando
Abranda, passa
Mais rápido.

Yasunary Kawabata
Marão abaixo:
Neva.

Matsuo Basho nos
Ouvidos de um ganzado
No Porto.

Abraçam-se como se
Fosse a última vez.
É sempre.

Turku


11/2015