quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Um Cheiro Entranhado Nos Dedos

“a poesia repete
o instante da sua criação, muito para além dos poemas
e do poeta”
Nuno Júdice

Não suporto este cheiro nos dedos, já lavei as mãos sete vezes, se calhar,
Isto agora só lá vai com um poema, mas os olhos hoje estão fartos da textura
Do papel desperdiçado em tanto génio, tanta verdade a ser dita,
É verdade o que se ouve nos cafés sobre a verdade ser como a poesia,
Ninguém gosta de a ouvir, terei que limpar os dedos nuns versos,
Como naquela visita à capital, aos 16 anos para o torneio de basquetebol,
A viagem toda a ler o Gatsby, desde Trás-os-Montes, escondido das miúdas
Que me queriam tirar fotos com as máquinas descartáveis, atrás das cortinas
E eu cobria-as de punhetas nos beliches do quartel da tropa, enquanto uns ressonavam
E outros não se calavam porque a mãe não estava e na verdade tinham medo
E queriam mostrar-se homens, tenho a certeza que uma futura poeta
Me piscou o olho no refeitório da faculdade, pisei o Pessoa sem saber quem era,
Distraído como estava com um par de lésbicas, os dedos gordurosos
Do hambúrguer, das primeiras, e um livro de poesia a ajudar na multinacional antes
De ir ver quem trocou a fome pelo kartódromo, na verdade não escrevi lá nada,
Andei ocupado em aprender a jogar xadrez e a fotografar o túmulo do Camões,
E as salsichas cozidas com o chocolate quente nas malgas de lata no quartel,
Não me pareceu uma refeição de poeta, faltava bagaço na coisa,
Já têm outro cheiro, à água do rio, entre o fato de banho à sombra
Dos salgueiros, já cheira à pele salgada a desabrochar em broche,
Já cheira aos anos perdidos e somados ao fracasso que agora simplesmente
Se aceita, como um cheiro entranhado nos dedos, que passa, mas persiste.

Turku

João Bosco da Silva


06.01.2016

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