segunda-feira, 27 de junho de 2016

“Da Natureza Dos Deuses”

Se o engenheiro soubesse que as visitas não visitas, mas testemunhas do final,
Contagens decrescentes silenciosas e inquietas entre as palavras cruzadas,
Cães à espera que o velho morra e abra os dentes, deixe cair o osso que todos querem,
Todos sorrisos ao entrarem que logo se apagam num canto que espera que durma,
Durma senhor engenheiro, descanse, abra o dente que já mordeu muito,
E os olhos do homem no tecto a tentarem agarrar o que resta da vida,
Aquelas mulheres todas em troca dos favores e outras tantas em troca da ilusão,
Ele pode, ele se quiser, ele mete-te lá, ele mete, um deus quase, agora estrangulado
Numa fralda que sem dar por isso aquece e depois frio nas vergonhas
Que subjugavam, de joelhos se faz favor, engula toda, vá, não se esqueça
Do que fiz pelo seu marido, o seu filho passou graças ao apertinho bom da mãe,
A sua filha já tem que idade, todas naquele tecto vazio enquanto um parente
Se debate com uma palavra horizontal, tão fácil, tão simples, cinco letras, na ponta da língua,
Morte.

27.06.2016

Turku


João Bosco da Silva

terça-feira, 21 de junho de 2016

Memórias De Garagem

Ela morava na garagem de um tio, a mãe era divorciada, devia andar a esconder-se do ex-marido, aquilo parecia-me tudo um crime, eu jogava com o irmão numa máquina que se ligava a uma televisão dos anos oitenta jogos dos finais de setenta e contudo muito melhores que a minha tetris de duas pilhas AA, imitação do jogo da moda, o tio da terra do meu pai,
Por isso nós namorados,
Ela uma ano mais velha que eu, cheia de experiência e com tanta fome que me dá a mão e me leva assim a correr à minha frente até à garagem, a prima uma mulher já de bikini a despertar o meu tesão de garoto, devia ter uns quinze já e simpática para mim,
Olhos lindos, dizia, olhos lindos, já tens namorada
E eu a cruzar as pernas e entortar um pé e a engolir aquela pele dourada toda, mas a namorada a ver tudo e a puxar-me a mão outra vez,
Anda jogar, gostas de jogar
E o irmão grande já, diziam que fumava e drogas, andava de boné com a pala para trás, uns dois ou três anos mais velho que eu, eu aceite mesmo que férias de Verão e todos os colegas de escola já a meio caminho de se esquecerem de mim, eu que não voltaria a vê-los, eu que me lembro até da garota que lambia tanto o bigode que o lábio superior até ao nariz, um cieiro gigante, era pobre, claro, todos o éramos, menos o filho do doutor que dizia que pinava a menina de quem eu gostava, filha de pescadores, e a meia-irmã que já andava no ciclo, no quintal ao lado da escola e contudo ficava impressionado com a gaita de um cão vadio a caminho de casa, ele nunca imaginaria que eu uma namorada que nunca dele,
As nossas mães são amigas, nós namorados e podes jogar quando quiseres com o meu irmão
E eu sem dizer nada, que sabia eu das regras dos grandes, a tua irmã divorciada, tu lá deves saber, e a mim, um monstro deformado com uma cicatriz enorme no queixo, que tinha que esperar pela barba para se esconder como o médico,
Eu também, por isso barba,
Bem me servia, era só para ir de arrasto de mão dada,
Anda,
E durou umas duas ou três vezes, depois fomos embora para Trás-os-Montes e ela de certeza que já no segundo filho ou marido, divorciada como a mãe, com calções em vez de bikini e eu apagado da memória completamente, eu que ainda sei a sua pele morena de cor.

Turku

20.06.2016


João Bosco da Silva
O Estado Do Tempo

Tenho os sentidos à beira da catástrofe, vivo num último gole constante,
Cada sirene que se apaga na urgência distante é uma morte anunciada
Ao lado da almofada, como podem os dentes apertar tanto numa fome silenciosa
De sonho, acorda-se todos os dias em cima de uma ponte mais pronto para o salto
Que para a travessia, e o Sol acende isto tudo com a sua miopia benevolente de deus,
A água passa mas o rio cada vez mais turvo e cada vez menos cães nas ruas da noite,
Cada vez mais o latir dos ossos encalhados nas pedras romanas,
A estas horas só a inutilidade de um verso pode salvar, a vontade não basta
E os sorrisos têm sido tantas vezes falsificados que se desconfia com os dentes todos,
Tenho os sentidos à beira da catástrofe enquanto as crianças brincam na rua
E também elas um fim anunciado muito antes da decadência dos seus brinquedos favoritos.

20-06-2016

Turku


João Bosco da Silva

sexta-feira, 17 de junho de 2016

Ruína

Na caixa de papelão uns pedaços de cortiça esculpidos
Com a inocência dos primeiros artesões que foram crianças
O cheiro do Verão na relva recém cortada da casa dos vizinhos
A renda paga e os sacos de plástico ao lado do balde do lixo
A janela da cozinha engolia o mundo todo a meio da tarde
E aquela vizinha que nunca se esquecerá, seja em que Verão
Se lembre a praia e aquela pausa de felicidade entre joelhos
Esfolados e paixões por peixeiras e cerejas com sargaço no ar
Os pedaços de cortiça vacas antes de vacas esculpidas
Pelo avô no lameiro onde de certeza o centro do universo
De um universo ao menos, mesmo que os poços secos
E os cães mortos e as partilhas feitas e as macieiras queimadas
E a cerejeira seca e os tombos impossíveis agora
Porque já és grande e nunca vens a tempo das cerejas
Só de veres o mundo a arder e as chamas nunca tão altas
Podia ser tão grande se a infância não tivesse sido tão curta
Mesmo assim, trago hábitos de garoto agarrados aos vícios

17.06.2016

Turku


João Bosco da Silva

quinta-feira, 16 de junho de 2016

O Cemitério Somos Nós

“pobres girândulas finais dos destinos anónimos.”

António Lobo Antunes

O cemitério somos nós, enchemos num dia de chuva, todos os papéis
Que se perderam, todos os sorrisos que se lavaram, todos os nomes
E acima de tudo, todos os que nos foram e aqueles que não quiseram
Que fôssemos neles, todas as portas  fechadas com flores podres à entrada,
Os autocarros que partiram para a felicidade que se lhes imagina
E os que ficaram avariados nas garagens colonizadas por aranhas,
Todos os porcos nas manhãs geadas e o sangue quente a fumegar
Nos olhos dos vivos que fogos fátuos no verão, todos ao cemitério
Num dia de chuva entre dias quentes, todos os amigos a quem
Lhes falhou o tempo ou a vontade ou a vida, todas as curvas da estrada
E dos rios, todas as noites estreladas e as manhãs do mergulho no nevoeiro
Em direção aos bons-dias sempre quentes sem ponta de nariz,
O cemitério somos nós, onde todas as cidades convergem e se esmagam
Todas as ruas os mesmos segredos, cada árvore um gemido de madrugada,
Cada sonho uma derrota acordada, e todos os lábios nos olhos fechados
Em forma de lápide que muda de cor sob o céu que se desfaz numa tristeza universal.

16.06.2016

Turku


João Bosco da Silva

sexta-feira, 10 de junho de 2016

Beijos E Multiversos

Se te tivesse beijado naquele jantar em que choraste depois
De uns copos de vinho branco, eu com uma garrafa de cerveja
A noite toda, quem era eu, não sei, se calhar eu hoje
Um desconhecido familiar sentado no sofá com a camisola
De um clube a acender inimizades com velhos amigos de cores diferentes,
Um carro na garagem que toda a gente vê e um buraco na carteira
Que eu não queria ver nem sentir, um par de garotos mais pesados
Que mil malas e todos os países que queria ver resumidos a
Uma lua-de-mel no Brasil ou nas ilhas de uma ex-colónia,
Provavelmente mais gordo, com as costas ainda mais encurvadas
Pelas palmadas da amizade, umas quantas putas no orçamento,
Uma amante no trabalho em sopro apressado no parque de estacionamento
Antes de regressar a casa para o conchego do cheiro a refogado,
Um cinema, ao menos, por semana com os garotos e o teu rubor
Nas bochechas ao passarmos por um colega teu que pensas
Que eu não vi a apertar os cordões com os olhos,
Tudo engolido com as pipocas e duas sonadas interrompidas
Pela urina do mais novo e as luzes do intervalo,
Mas que sabia eu de roubar beijos, eu que passava pelas montras
Da fome com os bolsos cheios de vontade.

Turku

06.06.2016


João Bosco da Silva

quinta-feira, 2 de junho de 2016

Dívida De Esperma

Inspirado no poema “Os Lubrificados” de Hal Sirowitz

Naquele mês de Maio comprava uma caixa de três preservativos de cada vez
Porque sabia que o nosso amor não duraria mais do que umas quantas vezes,
Naquele dia em que te sentaste com um aperto de surpresa,
Já tinham acabado os preservativos e o esperma, mesmo assim,
Tiraste-me do fundo de ti, acolheste-me na tua boca e desses lábios
Que mais tarde voltaria a saborear, mais meus que teus, disseste-me
Entre mergulhos, quero que te venhas na minha boca,
Só anos mais tarde, em Agosto, te paguei a dívida de esperma
Num banco de trás com um preservativo no bolso emprestado por um amigo,
Mas aquela moeda de troca já tinha saído de circulação e a Lua sabia disso.

01.06.2016

Turku


João Bosco da Silva
Buraco Negro

É muito peso, todos os nomes, aqueles sorrisos fermentados
Em ódio ou esquecimento, aquelas pupilas encerradas em íris
De mil cores, os ritmo dos passos, os perfumes de dia e de noite,
Trago-vos a todas comigo, nos dedos, nos lábios, na sacodidela
Do tesão da manhã, no olho do cu, nos olhos, lá mesmo no fundo
Onde também vivem certos planetas e estrelas, onde morrem sonhos
E nascem medos, todas, tantas, perdidas para sempre.

31.05.2016

Turku

João Bosco da Silva