segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Hurricane

Ainda deve estar entre aqueles meus primeiros poemas, o/a “Hurricane” do Bob Dylan,
Em papel reciclado e a tinta azul, que era sempre a que sobrava no fim do tinteiro,
Numa gaveta dominada por humidade e segredos que só os fungos agora conhecem,
Era uma canção, poetas americanos nunca tinha lido e o inglês do nariz ainda me custava
A entrar nas orelhas geadas, parecia-me um conto, mas era em verso, cantado,
Aquele mp3 que o amigo francês encontrou no Napster e só não se gastou
Por se ter perdido entretanto entre cds riscados e disquetes desmagnetizadas,
Ainda devo ter grandes obras imortais perdidas naqueles bits obsoletos,
Pensem nos vossos cérebros fossilizados, revoltados com aqueles títulos
De imortalidade atribuídos por mortais, revoltados da mesma forma com a fome
E a fartura dos outros, quando o estômago moderadamente cheio de reis,
Tenho lido desde então tantos poemas que não são canções sequer, só merda,
Escrito provavelmente ainda mais, mas nunca tive outras ilusões além da purga,
Toda a revolta dos poetas agora, lembra-me o Gregory Corso indignado
Porque alguém tinha escrito “poet” no túmulo do Jim Morrison,
Se calhar com inveja de um artista menor ser maior que a morte, “he beated the dust”
Parece-me que todos os poetas queriam ser na verdade rockstars,
Que todos lhe comem do prato dos restos e não conseguem parar de rosnar,
Ao mesmo tempo que se comovem com os cacos dos sonhos alheios e galinhas mortas,
Nada chega para todos, onde um está só o amigo cabe, amigo do ódio de estimação,
Imparcialidade impossível nos olhos amargos de dedos pesados pelo brilho de lata,
Cantor não entra, palavras só as da minha cor, em papel é que é,
A cantar ou a rosnar, de papel ou de ar, lembrem-se que
Cabemos todos neste barco de ilusão em direção ao esquecimento.

Turku

31.10.2016

João Bosco da Silva



sábado, 29 de outubro de 2016

Querido Diário

Acordei bastante cedo para um dia de folga, 12:30, café de cápsula,
Vamos todos morrer de qualquer forma, banho a ouvir Lana del Rey
No gira-discos avariado, duas fatias de pizza do dia anterior,
Sair uma vez de bicicleta e abortar pelo medo à chuva no pouco açúcar
Que resta na carcaça amarga, segunda tentativa de guarda-chuva amarelo
Trazido de Tóquio e outros dias cinzentos mais iluminados,
Ir comprar um disco do Bob Dylan para redimir os mp3 piratas que
Fizeram companhia nas noites solitárias de cidades doutros anos
E acabar com um dos Radiohead, ir ao banco levantar 500$,
Ver a bodybuilder iraquiana com o boné igual ao que trazes,
Depois de mais 10 minutos perdidos para sempre,
Acabar por ter que ir à Forex levantar os dólares, sem paciência
Para as tentativas de engate da funcionária, claro que é de férias,
Ir lá fazer mais o quê se nem imaginação se tem para um verso,
Entrar no bar favorito, vazio ainda às 4 e meia da tarde, ainda bem,
Pedir uma cerveja picante e pensar como raio se apaga a boca
Se a cerveja acende mais a língua, abrir o livro The Days Run Away
Like Wild Horses Over The Hills e emborcar o inferno na companhia
De um dos mortos favoritos e isto é o dia de um poeta so far,
E têm sido raros dias de chuva assim, mas tu sabes bem porque escrevo,
Querido diário.

Turku

28.10.2016

João Bosco da Silva

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Marla Singer

“At time, my life just seemed too complete, and maybe we have to break everything to make something better of out ouserlves.”
Chuck Palahniuk

Andei o dia todo a tropeçar em versos alheios e era a ti
Quem me parecia encontrar nas sombras entre cada verso,
Não consegui aguentar mais o poema assim que senti
O gosto do fumo do teu cigarro na ponta da língua, onde tem pernoitado
Na minha falta de sono e sonhos, tu umas filas à frente silenciosa
E tão gritante que nem um verso se ouve cair, de cinza e fumo,
Quanto tempo passamos a quebrar-nos para nos sentirmos inteiros
E acabamos inteiros como os filmes onde julgávamos encontrar-nos,
Mas eram afinal os ecos da ficção nos nossos corações vazios,
Foste a personificação da perdição pela qual me apaixonei,
Aquele sabor do meu sangue nos teus dentes enquanto a porta se abria
E a noite subitamente tudo, os autocarros perdidos à força dos últimos
Espasmos secos em fomes afogadas em enterros entre cigarros e outro tesão,
As luvas azedas esquecidas no lava-loiça cheio de esquecimentos menores
E vergonha, os inibidores da recaptação de serotonina que acabamos por aceitar
Como se aceita a vertigem na queda “and suddenly, I felt nothing”.

26.10.2016

Turku


João Bosco da Silva

sábado, 22 de outubro de 2016

Mau Olhado

Invejarão a tua juventude enquanto a tiveres, serás sempre mais jovem que alguém,
Invejarão os teus sonhos, o que viveste e o que te morreu,
Invejarão até a tua pobreza e a liberdade que daí vem,
Invejarão as tuas escassas mulheres só porque não foram também deles,
Invejarão as fomes que não passaste e as que tiveram que ser,
Invejarão as manhãs que não viram e as tardes em que não acordaram,
Invejaram até a tua morte, a tua paz definitiva, o teu silêncio,
Por isso vive, leva esse corpo à morte, serás sempre o que eles não foram.

22.10.2016

Turku



João Bosco da Silva

domingo, 16 de outubro de 2016

“Por Delicadeza Perdi A Minha Vida”

Li que o bar de alterne do outro lado da rua reabriu,
De todas as vezes que tive vontade de lá entrar nunca o fiz,
Por estar sempre entre nós o constante viaduto da minha cobardia,
Vizinho do meu quarto de insónia e masturbação
Onde escrevia poemas enquanto imaginava o meu colega para ti,
Não vim até aqui para falar, a desapertar o cinto,
Tu que me fazias esquecer a fome de uma qualquer,
Nunca te ajoelhaste para mim, mesmo sabendo do meu deus perdido,
Só te me confessavas e eu queria era a absolvição
Do teu sangue quente que falhava nos trânsitos tortuosos
Da tua alma perdida entre a infância e o fim dos tempos
Naquela cidade em constante ruína,
O meu colega, queres que te leve a casa, enquanto pensava,
Mais uma, estão quase todas e eu intercalava os poemas
Com uma punheta ou mais um filme em que te encontrava,
Depois contigo no café, tentava apanhar com a ponta do dedo
Um cristal do teu açúcar na mesa suja,
As asas que não bateram na altura dos teus olhos
São hoje bandeiras de derrota.

15.10.2016

Turku


João Bosco da Silva

terça-feira, 11 de outubro de 2016

Vim Para Perder

Vim para perder, se faz favor, deixai-me seguir o mesmo destino
Dos meus heróis enterrados, vim para perder e a cada carta
O destino sorri-me como se me estivesse a fazer um favor,
Mas vim para perder, deixai-me perder até as meias,
Nada foi meu, nada será meu, na verdade, só nada é verdade,
Já tenho mais do que o que trouxe para perder e nem a vida é minha,
Tantas memórias do tempo em que podia ganhar tanto com tão pouco,
Tanta ilusão juvenil ou já a miopia que se iniciava nos olhos derrotados,
Se a carta vem má há um bom samaritano que paga além da derrota
Com a sua sorte, até a sorte dos outros me persegue
Mesmo que tenha vindo para perder, mais uma carta,
Mais um dia para chorar por favor que os versos estão-me a acabar.

11.10.2016

Turku


João Bosco da Silva

sábado, 1 de outubro de 2016

1 de Outubro

É o primeiro dia de Outubro, desço da cabana até ao alambique
Onde cai em fio lento a aguardente para um garrafão,
Passando por uma cana onde uma espiga de trigo pendurada
A guiar a queda, corto o fio quente com o meu dedo
De onze anos umas três vezes e provo a aguardente
Doce, o ar promete chuva, o horizonte promete tudo,
Cinzento, já se devia adivinhar o resultado de tanto dedo,
Subi as fragas de volta à cabana, mais quente,
Maior, começa a chover sobre o telhado improvisado,
É o primeiro dia de Outubro, fecho os olhos para
Mais facilmente encontrar aquele sabor, aquele cheiro
A outono no ar, aquele horizonte que já nada promete,
A não ser distância, a cabana durou menos que a infância,
Às vezes ainda me fecho nela antes da chuva,
Outras vezes fecho-me em incontáveis mãos de sede
Mas nada se compara àqueles três dedos destilados de infância.

01/10/2016

Turku


João Bosco da Silva