sábado, 24 de dezembro de 2016



Falhas de Natal

para o meu amigo Tomé

Passar a tarde no café a beber vinho do porto
Até serem horas de ter vergonha e ir para casa
Antes dos camarões arrefecerem e o polvo encolher
Até ao tamanho da memória de alguns Natais,
Chegar a casa a tempo do início de um dos filmes típicos,
Já entre a bebedeira e a ressaca, pronto para a sede do bacalhau
E do vinho tinto da última colheita que escorrega lubrificado
Pelo azeite novo, comer e continuar nos licores
Até à hora de quem tem fome de influenza em pés de barro
E canibalismo simbólico, fumar bem os anos todos
E continuar a beber por entre as ruínas do presépio
Coberto de papel de embrulho que encerrava o medo do esquecimento,
Lembrei-me de ti, lembrar-me-ei sempre de ti a quem não darei
Sequer mais um abraço, amanhã não haverá porco para matar,
Nem é preciso, não neste ano de cheiro constante a sangue no ar,
Lembrei-me de ti, não por estar longe,
Mas por ser o primeiro em que nunca mais estarás.

24.12.2016

Turku

Joao Bosco da Silva

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Visitando Bukowski

Longe, longe da skid row, dos carrinhos de compras cheios de lixo,
Dos quartos habitados por garrafas vazias nos quais vibravam sinfonias
Ao ritmo do estômago convulsivo das manhãs que nasciam famintas,
Longe dos murros nas paredes finas e dos gritos das mulheres
Indefesas e inocentes da loucura fermentada a delirium dos homens,
As crateras da tua cara uma lápide bem polida agora,
Dor só a que os outros sentem nas tuas palavras,
Os cavalos passam só os dos carros que levam a multidão até
Onde nunca se dá pelo amanhecer, as mulheres, mais agora
Que nos dias de fome, marcando os lábios na pedra fria
Que a chuva vai lavando e desfazendo os cigarros meio fumados,
Entre bandeirinhas vermelhas, rodeando uma advertência,
Um conselho, não tentes, se não for para ir até ao fim, não tentes,
(Veio ver o Bukowski, venha comigo por favor, a Sarah virá
Já atendê-lo, queira aguardar, a gente deixa-lhe cigarros
E garrafas, era o que fazia, beber e mulheres, viu o filme Barfly,
Sim, entre outras coisas, entre outras coisas, sim,
Olá seja bem-vindo, aqui tem as indicações, será fácil encontrá-lo,
Numa curva, monte acima, tenha um bom dia, obrigado),
Passar a vida num Inferno para acabar a eternidade num monte
Relvado com vista para o Pacífico, debaixo de um pinheiro.

14.12.2016

Turku

João Bosco da Silva


Madrugada






Cesárea Tinajero


Queria acordar só mais umas vezes de joelhos esfolados da bicicleta
Numa manhã de Julho em casa da minha avó, longe deste whisky,
Que sinto subir esófago acima, depois da queda, armado eu em vulcão
E na boca um gosto a últimos dias de Kerouac, ferro, cobre, não sei,
O cheiro dos dedos negros ao luar depois de dentro dela no cemitério,
Também gostava de ter recebido beijos à janela das miúdas que vinham
No Verão da capital, mas nunca tive sotaque de telenovela,
Foram destas ausências que se fez o meu caminho até à poesia,
Nunca vi certo filmes antes do fim dos anos noventa, nem na televisão,
A primeira vez que os vi foi nos lábios dos amigos com pais mais tolerantes
Às contas da luz com madrugadas incluídas, no fim de contas deu tudo
Na mesma merda, só que acabei por ir até onde os tais filmes acabavam,
Hoje sou todas as estações de metro, tão envelhecidas quanto a vontade
Que me leva à manhã seguinte, a cicatriz do joelho quase já nem se vê,
Estou a sei anos do Thomas Wolfe, ainda não tive olhos que me mereçam,
Mas são os dedos que não me seguem o pingar torrencial da tempestade de olhos secos,
Há seis anos, apesar da deriva, não estava tão perdido como hoje.

11-12-2016

Turku

João Bosco da Silva

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Inverno

É difícil escrever de portas fechadas, afogado em certezas de pó
E razões de vidro, enquanto lá fora o mundo todo chove
E continua a cair no fim dos tempos, num sopro cansado de deus
Reformado, é fácil cair-se na facilidade da sombra,
No encosto de cabeça na perdição morna que esquece
A melanina nos cabelos, é difícil escrever à deriva no tempo fechado,
Em abismos de esquecimento abertos como pernas de sonho,
Vai-se fazendo por ficar em alguém, que nos traga por cá
Por outros lados, que nos dê a boca e o tropeço do coração,
No inverno não há paciência para hastear bandeiras humedecidas
Com o sal dos dias quentes, correm-se as cortinas em vez de um poema
E lá fora tudo continua a escorrer frio como um sonho viscoso nos olhos.

08-12-2106

Turku


João Bosco da Silva

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Sacudindo A Gaita

“parecendo que não uma pitada de mau gosto melhora a qualidade de vida”

António Lobo Antunes

Entre ortodoxas, católicas, luteranas e muçulmanas nunca tive uma budista
E só passei ao lado de um casamento xintoísta, à parte disso, a caminho da serra,
Encontrei-me muitas vezes com três curvas seguidas, entre vacas a pastar,
Poços no auge da primavera e cerejeiras em flor, Caeiro queria ser japonês,
Mas só Bashô consegue ver com clareza absoluta, uma gota de água
Nunca poderá ser uma gota de ouro e por isso nunca terá menos valor,
Pára-se o carro ao lado de uma casa de guarda-florestal para um broche rápido
E logo desce de uma fraga o Gary Snyder com a sua barba branca
Até se apagar numa passagem de papel-higiénico num roçar de Bukowski
À espera de um quarto alugado no sofá de uma torre que partilha o horizonte
Com o castelo, alguém eleva uma revista mas não tem cona, por isso ninguém dá
Um caralho pelo gesto, no ar longe da condensação dos suspiros em pé de Hemingway
E a sua neve de papel caindo ao lado das pernas das amantes e do horror da mulheres,
As garrafas acabam sempre tão vazias quanto o espaço entre cada golo,
Queria dizer página, queria dizer mulher, queira dizer cona, queria dizer
Vazio, tão vazio, somos, tão vazios nos queremos, podendo ter a felicidade
Num aperto de mão que não quer largar, mas largamos tudo, todas,
E as rãs um sonho acidentado à beira de um poço em verões que mal se lembram,
O que nos terá feito tão velhos antes da careca de ping-pong do Miller,
O que nos terá feito tão cansados e salpicados pela tela toda do Pollock,
Será o medo de um extraterrestre humano, metade nós, ao lado da juventude,
Quando a juventude já longe dos primeiros pêlos de barba brancos,
Quando começamos a cair, se chegamos aos vinte já em queda livre,
Ainda estará livre a namorada Turca, já estará no museu a ortodoxa,
As luteranas ainda chupam gaitas indefesas nas festas das empresas,
As católicas continuam a engolir hóstias e gaitas no cu, que não é pecado,
O Álvaro de Campos deve estar enterrado nos Estados Unidos
Num monte verde, com uma engrenagem desenhada no granito,
Onde se lê, não dei por ela, mas foi minha, a viagem que já esqueci.

01.12.2016

Turku

João Bosco da Silva