terça-feira, 21 de junho de 2016

Memórias De Garagem

Ela morava na garagem de um tio, a mãe era divorciada, devia andar a esconder-se do ex-marido, aquilo parecia-me tudo um crime, eu jogava com o irmão numa máquina que se ligava a uma televisão dos anos oitenta jogos dos finais de setenta e contudo muito melhores que a minha tetris de duas pilhas AA, imitação do jogo da moda, o tio da terra do meu pai,
Por isso nós namorados,
Ela uma ano mais velha que eu, cheia de experiência e com tanta fome que me dá a mão e me leva assim a correr à minha frente até à garagem, a prima uma mulher já de bikini a despertar o meu tesão de garoto, devia ter uns quinze já e simpática para mim,
Olhos lindos, dizia, olhos lindos, já tens namorada
E eu a cruzar as pernas e entortar um pé e a engolir aquela pele dourada toda, mas a namorada a ver tudo e a puxar-me a mão outra vez,
Anda jogar, gostas de jogar
E o irmão grande já, diziam que fumava e drogas, andava de boné com a pala para trás, uns dois ou três anos mais velho que eu, eu aceite mesmo que férias de Verão e todos os colegas de escola já a meio caminho de se esquecerem de mim, eu que não voltaria a vê-los, eu que me lembro até da garota que lambia tanto o bigode que o lábio superior até ao nariz, um cieiro gigante, era pobre, claro, todos o éramos, menos o filho do doutor que dizia que pinava a menina de quem eu gostava, filha de pescadores, e a meia-irmã que já andava no ciclo, no quintal ao lado da escola e contudo ficava impressionado com a gaita de um cão vadio a caminho de casa, ele nunca imaginaria que eu uma namorada que nunca dele,
As nossas mães são amigas, nós namorados e podes jogar quando quiseres com o meu irmão
E eu sem dizer nada, que sabia eu das regras dos grandes, a tua irmã divorciada, tu lá deves saber, e a mim, um monstro deformado com uma cicatriz enorme no queixo, que tinha que esperar pela barba para se esconder como o médico,
Eu também, por isso barba,
Bem me servia, era só para ir de arrasto de mão dada,
Anda,
E durou umas duas ou três vezes, depois fomos embora para Trás-os-Montes e ela de certeza que já no segundo filho ou marido, divorciada como a mãe, com calções em vez de bikini e eu apagado da memória completamente, eu que ainda sei a sua pele morena de cor.

Turku

20.06.2016


João Bosco da Silva
O Estado Do Tempo

Tenho os sentidos à beira da catástrofe, vivo num último gole constante,
Cada sirene que se apaga na urgência distante é uma morte anunciada
Ao lado da almofada, como podem os dentes apertar tanto numa fome silenciosa
De sonho, acorda-se todos os dias em cima de uma ponte mais pronto para o salto
Que para a travessia, e o Sol acende isto tudo com a sua miopia benevolente de deus,
A água passa mas o rio cada vez mais turvo e cada vez menos cães nas ruas da noite,
Cada vez mais o latir dos ossos encalhados nas pedras romanas,
A estas horas só a inutilidade de um verso pode salvar, a vontade não basta
E os sorrisos têm sido tantas vezes falsificados que se desconfia com os dentes todos,
Tenho os sentidos à beira da catástrofe enquanto as crianças brincam na rua
E também elas um fim anunciado muito antes da decadência dos seus brinquedos favoritos.

20-06-2016

Turku


João Bosco da Silva