terça-feira, 23 de agosto de 2016

Volta À Canícula Do Mundo

Cá estou eu entre a certeza do fim e a ilusão da novidade,
Dando voltas ao mundo no quintal e regressando sempre
Aos quinze ou dezasseis anos, aos versos certeiros fora de linha,
Aos pêssegos maduros antes da descida dos ramos da figueira,
Ardeu tudo tantas vezes, no fim o que resta é o monte rasteiro
E aqueles beijos acesos no rescaldo das noites do fim do Verão,
Resta também a palha que incomoda as costas nuas numa paz
De ruminância e fermentação do leite contaminado pela fome
Fulminante de alívio, custa-me crer que tanto azeiteiro
Com oliveiras tão magrinhas, de onde nascem as saudades
Ao canelho, à pinga da água quando o vento puxa a chuva,
Ao rio que o Sol e os espanhóis amassaram, à má vontade
De braços abertos, só as raízes que persistem agarradas
À terra estéril, depois de há muito ter tombado o tronco
Sem testemunhas, poderão dizer de onde nascem aqueles ribeiros
Que durante o Verão secam e passam o resto do ano
A abrir a terra mais funda, a aproximar o fim da ilusão,
A meter quilómetros ao que a um passo, por fim o vento
Separa-nos com um roçar quente de flor seca,
Nos cemitérios ninguém nos espera, só na vida se consente
O que ainda não está, como evitar a porta de um amigo
Que nunca mais estará do outro lado, só para não se confrontar
Essa ausência nos olhos da sua viúva, por isso aqui
No quintal, entre a certeza do fim e a ilusão da novidade,
Dou voltas ao mundo enquanto o sino anuncia mais uma partida.

Torre de Dona Chama

04.08.2016


João Bosco da Silva
Half Life

Acordo e passaram quinze anos,
Ninguém diz que me espera na pizzaria para tomar um tango,
Parece-me que nasceu mais gente do que os que morreram
E no entanto menos pratos na mesa nos dias de festa
E mais casas abandonadas nos bairros antigos,
Acordo e só o Sol e as moscas me parecem iguais,
O ar cada vez mais pesado e o horizonte
Cada vez mais fino, ninguém me diz,
Deixa lá isso e anda comer,
Deixa lá isso e vem ter comigo atrás da junta,
Deixa lá isso e vai viver a vida ainda a meia distância desta
E o Verão tinha o tamanho proporcional ao futuro,
Hoje que se celebra a sua chegada com tom de despedida,
Acordo num sobressalto, será que
Alguém me mandou aquele tão esperado toque,
Terei puxado o autoclismo,
Haverá manchas nos lençóis,
Será que a neta da vizinha me viu,
Mas só os buracos nos vidros das janelas
Espreitam cheios de ecos de olhares,
Acenando num abandono de cortina
Em reconhecimento à nossa passagem fantasmagórica de canícula,
A que horas passará aqui o melhor amigo,
Queria mostrar-lhe até onde cheguei neste desperdício de vida.

Torre de Dona Chama

12.08.2016


João Bosco da Silva
Regresso

Parti há tantos anos e no entanto o horizonte recebe-me sempre
O olhar com força de granito, reconhece a seiva filha
Que me corre quente nas veias dilatadas pela saudade
E os sonhos evaporados pela distância irmã que tudo amadurece,
Há gatos novos no bairro que atravessam as fronteiras dos muros
Como noutras noites que foram mais minhas, sem promessas
De regresso e todas as casas velhas partem e delas apenas fica
A ausência das boas noites, a água fresca na pele familiar
É a verdade que resta, embalada pela brisa quente nas ervas
Aromáticas, haverá sempre roupa que seca esquecida das geadas
Dos últimos invernos, um dia contarei aqueles segredos
Que não encontraram as palavras, que só aos dedos pertencem,
Com a mesma inocência com que, com a palma da mão,
Se cobre aquela serra ou a Lua ou os pesadelos dos olhos
Das noites dos que se tornaram eternos na ausência.

Torre de Dona Chama

29.07.2016


João Bosco da Silva
Distâncias e Areia

Há distâncias que os quilómetros não medem, nem o tempo as justifica,
Crescem tanto dentro da medula como o sangue e os sonhos vívidos,
São distâncias de areia na sede e de fastio nos banquetes que se repetem
Na celebração da distância e nunca seremos os que trazemos dentro
E todas as suas madrugadas de ampulheta acelerada e fome com a complexidade do fogo,
Há distâncias que separam a concordância entre as aurículas e os ventrículos
Como o alcance da vontade das mãos, desculpa-se tudo com o esquecimento
De quem está menos a distância que se impõe nos dias de Sol
Dos verões cada vez mais curtos e secos.

Figueira da Foz

16.08.2016


João Bosco da Silva