domingo, 29 de janeiro de 2017

“Blue Jeans”

Os meus pés ainda pequenos a correr pelas fragas em direcção
Ao salto no rio, o mergulho na água com a pele quente do Sol
Pintada pelo ar dos amieiros, ainda sou quando me lembro de ti,
Ainda sustenho a respiração até os pés tocarem no fundo,
Sem medo de gravidade ou profundidade, a salvação
Num mergulho de cabeça, saberás sempre que és tu,
Que é de ti a água que seca na pedra quente,
Saberás sempre que o gelo todo também é teu e espera
Algo mais que a genuflexão do planeta ao deus dos teus olhos,
Às vezes tropeço em ti antes de um REM, numa convulsão
De queda livre, num mergulho de infinito, numa certeza de sonho,
Cada poema não passa de um segredo que te queria ter contado
Na mesa de um café de uma rua ressuscitada,
Cada copo vazio é uma tentativa de chegar a mais uma vida,
Que não imponha décadas e tantos lábios para ir matando as noites,
Quantas vezes abri um livro e li para ti, estamos aqui,
Quantas vezes entrei numa cidade nossa sem ti,
Os meus pés ainda pequenos a correr pelas fragas quentes
Em direcção ao aconchego da boca do abismo,
Onde te encontrei uma tarde numa sala de ouro do Brasil,
Onde me afundo noite após noite, poema atrás de poema,
Até os pulmões se encherem da única forma de esquecimento.

29.01.2017

Turku


João Bosco da Silva

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

E Agora?

Hunter S. Thompson, save us!

E agora que vamos fazer do mundo enquanto os tolos enfurecidos
Se matam por ideias carunchosas de glória e além não há merda nenhuma,
Agora que os reis nos cospem nos olhos mentiras que temos que abocanhar
Como cães que julgam que somos e digerir aquele veneno como
Se fosse para o nosso bem, enquanto eles dos altos castelos se riem
De que a sua merda humana nos faça medo e lhe tenhamos respeito,
Que vamos fazer agora que o passado impossível parece chegar como
Uma avalanche óbvia e inelutável, porque alguém deixou a porta aberta
Pois o inverno já tinha sido há muito tempo e os lobos entraram
Fecharam as portas, ergueram muros e sentaram-se a roer-nos
Os ossos e o futuro à lareira apagada, e agora, agora que o não chegam a tanto
Chegou, agora que o não vai lá foi e já passou até dos limites
Da imaginação dos livros distópicos que comemos na adolescência
A uma distância segura da loucura que germinava, fermentava,
Em silêncio debaixo dos nossos colchões de barriguinha cheia,
E agora, se tivermos que fazer a barba por medo, andar de cruz na lapela,
Ou de cruz escondida por medo, agora que anoitece e ninguém parece
Querer acreditar que se precisam acender os olhos e ver, ver de verdade,
Contra toda a areia que nos atiram nos olhos como quem nos quer
Semear vazios na cabeça, é que agora já é tarde, agora já passou da hora, agora.

26.01.2017

Turku


João Bosco da Silva
Selma Park

Enquanto engulo este vinho californiano, com um final
Que dizem pimenta, mas parece-me café, lembro-me
Daquelas garrafas embrulhadas em sacos de papel, ao Sol,
Daqueles homens e mulheres esquecidos do mundo
À procura de uma resposta à altura, no fundo da garrafa,
No bolso vazio, no êmbolo, no isqueiro debaixo da colher,
Na unha cheia, no cachimbo de vidro, na fome, no Sol,
Com os carrinhos de compras cheios de um lixo que lhes é tudo,
Estacionados ali ao lado das mesas onde se acumulam
Papeis engordurados e manchas de ketchup e maionese,
Evoco Schubert para me equilibrar na corda bamba do poema
De copo em riste e lembro-me daquele parque em Hollywood,
Minúsculo, a coisa mais parecida com uma prisão a céu aberto
Que já vi, só que lá dentro cada um preso à sua própria liberdade,
Imagino o Bukowski a acordar ali numa manhã quente,
Mas já ele estava longe da vida dos parques e da vida da vida
Quando abriram o Selma Park, o vinho californiano é-me sempre
Demasiado doce, deve ser do Sol e de misturarem a miséria
A céu aberto com a pouca vergonha do luxo à beira do abismo.

Turku

26-01-2017


João Bosco da Silva

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Tropeço Em Crónica

Despejavam-se os sacos de roupa no chão e o que mais me incomodava
Era o cheiro a estranho, aquele cheiro típico que é uma mistura da dieta,
Do detergente da roupa, do sabão, dos perfumes, da actividade física
E outros hábitos nocivos, aquele cheiro como uma assinatura,
Como os cheiros a casas alheias, ou até da própria depois de uma ausência prolongada,
Eram calças, camisas, camisolas, t-shirts, quase tudo números acima,
Teria que se esperar por mais uns centímetros de carne e osso,
Isso mais uns meses e dás um pulinho, no calçado colocava-se algodão nas biqueiras
Para não incomodar o ar com as unhas, não me lembro de cuecas,
Já chegava andar com o cu das calças de bombazina roçado por outro cu,
Já bastava aquele cheiro que parecia indomável ao sabão e à água fria do tanque de pedra,
São coisas boas, caras, de marca, e até eram, as peças rejeitadas dos senhores doutores,
Dos emigrantes, dos das cidades grandes, o pedaço de pão que não se acaba por luxo
E se atira aos pombos, mas era uma esmola sempre paga, batatas, azeite, vinho,
Um agradozinho para fazer o papel de pobre, a mim restava-me a vergonha
De se me descalçar um sapato ao andar ou que o antigo cu reconhecesse as calças
E tropeço agora numa crónica do António Lobo Antunes na qual me dou conta
Que fui, sem o ser, um pobrezinho de estimação.

Turku

24.01.2017


João Bosco da Silva

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017


Haikus de Monte

O pai lê o mestre –
sentados ao Sol
ambos fascinados.

Saltita ao Sol
o pardal –
o gato dorme.

A roupa estendida
saúda o Sol
em despedida.

Ladram os cães
ao longe –
batem talheres na louça.

O livro do mestre –
na capa brilham
gotas de orvalho.

A figueira sem folhas
um pinheiro japonês
sem agulhas.

As folhas dos nabos
ainda cheiram
à geada da noite.

Fendeu-se o muro
onde a água
já não passa.

A última folha do marmeleiro
recebe agora o Sol
de Inverno.

No tanque
as placas de gelo
brilham ao Sol.

As fragas cá me espera,
sempre,
para sempre.

Deixo o mestre ao Sol –
parto para o monte
da infância.

No banco de pedra gigante
Só eu me sento –
Além do Sol nada.

À esquerda a Lua,
À direita o Sol,
Eu e os Montes no meio.

As pinhas silenciosas
e os pássaros
não sei que me dizem.

No verão os incêndios,
de inverno as queimadas –
há sempre fumo no horizonte.

Entre uma Montanha
e outra
um mar de neblina.

Da janela do quarto
vejo o pôr-do-sol –
só a infância não amanhece.

Tocam os sinos,
pragueja a vizinha –
ainda há vida na vila.

No saco de plástico
respiram ainda
as folhas de louro.

Hora de almoço –
os miúdos gritam
e no ar mil aromas.

Os bugalhos esquecidos
nos ramos
juntos à infância.

Não invejo os que ficam
nem os que vão –
a dor é toda nossa.

Será que o musco
ainda reconhece
o peso dos meus pés?

Bebo o café ao Sol –
não sei
o que me aquece.

Subia e descia a montanha
com Kawabata –
atravesso-a com Bashô.[1]

Sempre teremos
Paris na ilusão
e o Porto na memória.

Despeço-me
antes do Sol
nascer novamente.

Janeiro 2017

Torre de Dona Chama - Porto



[1] Escrito atravessando o túnel do Marão.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Confissão De Um Crime

A primeira vez em que não ganhei um prémio de poesia
Foi no meu 6ºano, por altura do São Valentim, fiquei em segundo,
Perdi para o meu melhor amigo, as juízas foram as professoras de EVT,
Uma hippie e uma filha de militar de alta patente, a razão foi
Não ter feito referência a Camões na minha composição poética,
Na verdade foi para dar exemplo, já que eu era um criminoso,
Eu e o resto dos rapazes da turma tínhamos um processo disciplinar,
Todos, menos o vencedor do prémio, que depois da escola
Era levado directamente para casa, consta-se que espancamos violentamente
Uma colega em frente a um café depois da aulas,
Vingança por o seu mau comportamento na aula de português
Ter levado a que uma ficha de preparação se tornasse num teste de avaliação,
Muitas colegas choraram, não tinham estudado, não estavam preparadas,
Lá se fez e correu bem, na verdade eu fui um ladrão que ficou à porta,
Porque tive pena dela, também foi esse o argumento que me ditou a sentença,
O ditado popular, no julgamento, disse que lhe tinha dado um croquete,
Como fazia o professor de português do 5ºano, isto para não ficar fora,
O que fiz foi pousar-lhe a palma da mão na cabeça e ao sentir aquele cabelo
Quente senti uma grande amargura, por todos, pousei a mão como quem
Absolvendo se condena, e fomos condenados a trabalhos forçados,
Abrir buracos para o dia da árvore antes de almoçar, eu tive que abrir dois
Porque o primeiro chegou ao cabo eléctrico de um candeeiro,
No segundo que tive que abrir, todos os criminosos como eu, me ajudaram
E lá fomos comer, cheios de terra, fui destituído da função de chefe de turma,
Fiquei em segundo no prémio de poesia, acabaram por me dar cinco a EVT
E quatro a português, porque fui um ladrão que ficou à porta
E acabou por levar com uma sentença antes dos dez,
Deve ser por isto que até hoje nunca ganhei um prémio de poesia.

Turku

02.01.2017

João Bosco da Silva
Primeira Morte

Morreu com aquele verão dos seus dezasseis anos, a sua primeira morte,
O ano em que as torres dos filmes caíram de verdade e só anos depois
Voltaram a aparecer, o ano em que, depois de um poema sobre a queda
Por aquelas mãos que se queriam à volta da gaita, deu-se conta que era poeta,
Mesmo que aquelas mãos continuem a esgaçar homens mais práticos de números,
Até deus deixou de se engolir ainda com calos da cruz das procissões
E o riso contido do dente da velha a bater na patena, engolindo a hóstia
Com fome de tudo e sonhos apagados, morreu antes dos amigos
Terem provado o que ele provou no quarto escuro do avô,
O primeiro avô morto, a cona de uma miúda de treze anos
E a sua língua pelo tesão quase imberbe acima e abaixo,
Os seus primeiros pelos loiros do mento brilharam ao luar,
Uma alegria que não se voltará a recuperar por mais conas que prove
E naquela noite testou a resistência da pele do prepúcio
Até adormecer com o ressonar dos pais ao lado,
Agora dorme descansado ao lado do esquecimento,
Aquela primeira morte que foi arrefecendo nos bancos de jardim geados
E recebia, morto já, de braços abertos, vazios, autocarros
Vindos da capital até às mãos nos bolsos atrás da junta,
Com uma fome com a morte ali à mão e a outra em casa com a promessa
De que nunca aquele vestido azul no chão de um mesmo quarto,
E os poemas continuaram como as faúlhas de uma cremação demorada ao ar livre
Numa noite de inverno e não têm sido muito mais que isso, um desagrado à ausência.

Turku

02.01.2017


João Bosco da Silva