quarta-feira, 29 de março de 2017

Poetas Sem Título

Enquanto estávamos à entrada da livraria onde seria apresentado o livro
Do amigo poeta, a fazer horas, entre pavões premiados e sorrisos de falsa humildade,
Encandeados pela presença de um Sol trancado entre duas paredes centenárias
E contaminações reais, em trocas de curiosidades desinteressadas
E fumos passivos, ao lado, na porta traseira de um restaurante,
Os funcionários, uns três, todos à volta de Duluoz, o vaidoso,
Como se estivessem à volta de um rádio durante um jogo importante da selecção
Num intervalo da escola, todos jovens, com mais páginas em branco
Que a maioria dos que esperavam a apresentação do livro,
Aqueles miúdos, todos mais jovens que eu, com mais energia potencial poética,
Que todos os abanões e encontrões dos poetas e escritores ali reunidos
Com espadinhas ridículas desembainhadas a medir tamanhos de egos
Conquistados com papéis carimbados e joelhos macerados,
Aqueles miúdos com as mãos cheias de queimaduras, cortes, calos e fome,
Segurando aquele livro e a juventude e os sonhos todos,
Maiores poetas que nós todos juntos, ilusões, delírios e prémios incluídos,
Lá entramos para dentro da sala cheirando a mofo e livros que ninguém irá ler,
Enquanto eles ficaram na rua com cheiro a detergente e amoníaco,
Engolindo palavras antes de atacarem os tachos e as panelas, a vida,
Anos depois dou-me conta que nunca cheguei a entrar de verdade,
Fiquei no limbo entre duas portas, encostado à parede, entre poetas e poetas,
Entre os que nascem e os que são aceites, a um passo da sombra, olhando o Sol na calçada.

Turku

29.03.2017

João Bosco d Silva


domingo, 26 de março de 2017

Os Desocupados

Empurrando a sua moral ideal, rua acima e rua abaixo, num carrinho de supermercado
Roubado e ferrugento, ou lançando a sua fúria divina das janelas, ou das cadeiras de lona,
Ou das esplanadas com a cervejinha quente, o chazinho frio, lá andam os desocupados,
Sempre prontos a impingir-te uma lição que não pediste, para levares a vida aos eixos
Onde não encaixas, o caminho certo, o seu caminho, têm tempo para as pensar,
Estes desocupados, mestres de tudo, filósofos da roupa a secar e das cuecas da vizinha,
Génios da valorização do tédio e do consumo do tempo em metabolismo de relantim,
Não fossem eles tão devotos à hóstia ou às merendas e seriam mestres Zen,
Devias ser mais como eles, como o que eles querem que aches que eles são,
Devias limar mais, polir mais, deixar correr mais, cortar mais, calar mais, engolir mais,
Não gozar tanto que parece mal aos que desocupados, se ocupam da vida dos ocupados,
Sabes bem que ninguém viveria a tua vida melhor que um desocupado,
Ninguém sabe mais da tua vida do que um desocupado, acrescentando onde ignoram,
Ignorando onde lhes dá a sombra, ouve-os, cheios da sua experiencia de pastelaria
E versos coados à peneira do caruncho das gavetas, poemas vinagre com perfume do sovaco
Esforçado pela falta de hábito de viver, são todos hábeis na ficção, quase todos poetas,
Usando a rima para ocupar o vazio dos dias, sentam-se ao Sol mas só parecem ver
A sombra dos que passam, esses desocupados, perfeitos vivedores, imaculados santos,
Génios do espelho e do olhar invertido, gourmets da sua experiência limitada
E exploradores incansáveis do universo do seu bairro, inimigos das férias alheias,
Eternos magnetos de uma pega de bois ou de vacas, se lhe emprestasses a vida,
Sim, serias alguém em condições, trabalhavas a sério, levavas uma vida como deve ser,
Agora andar por aí, um perdido, a fazer que fazes, a ir aqui e ali, em vez de, em vez de.

26.03.2017

Turku


João Bosco da Silva

quarta-feira, 22 de março de 2017

Buda E Peste

Não se queixam
com sede
as flores de plástico.

Dos sonhos arruinados
nem uma pedra
para memória.

Anos depois o Danúbio
Ainda recorda
O poeta delirante.[1]

Dormiram cavalos
comeram os porcos
na casa de deus.

Beber vinho
onde princesas mortas
comiam bolos.[2]

Os folhos da saia
tão doces
antes do vinho.[3]

Sangue de touro –
ao longe teme-se
perto aquece a coragem.

Quando as evidências
são um Sol
ao acordares.

Todos os passos
nos levam
aos primeiros.

Qual é a distância
que mais
te custa?

Todas as cidades
o primeiro fascínio –
Porto.

Encontrar sonhos perdidos
em ruas
desconhecidas.

Trago-te sempre
comigo
desde que te perdi.

Enquanto tiver vida
e memória
será nosso o mundo.

À beira do Danúbio
lembro-me do amigo
nas margens do Sumida.

Que palavras se escondem
no fundo
do copo de vinho.

No café Astória
guerras e vidas depois –
cansado.

Sol –
um estranho
a cada ângulo.

Budapeste, Março de 2017

João Bosco da Silva



[1] O poeta Nuno Brito.
[2] Em Ruszwurm.
[3] EM Ruszwurm.
Acordar Cedo Tarde

Começam a ser difíceis as braçadas no emaranhado de cabelos brancos,
Até fome daqueles cabelos queimados que o barbeiro barria para um buraco negro,
Depois do espelho de manhã, antes do café, depois da descida da concentração
Filtrada de uma alma amarelecida e cirrótica, o dia não interessa,
A varanda basta para um reconhecimento universal, as estrelas lá estarão à noite,
Não é preciso mergulhar nelas para se sentir o abismo envolver a nossa insignificância,
Acordar como quem morre depois de ter vivido tudo, acordar com as mão vazias,
Com uma fome sem vontade de abrir boca, com os dedos trémulos salpicar
Salmos nas teclas pegajosas ainda com os olhos salgados dos sonhos vívidos,
Noutra vida, talvez, noutra vida quando nem esta se tem de verdade
E cada dia gasto à espera do Sol poderá ser o último amanhecer,
Entretanto colecionam-se manchas na pele, e dores esquisitas que nem
Se sabe ao certo onde moram, nem de que terra são, todas filhas da passagem.

22.03.2017

Turku


João Bosco da Silva

segunda-feira, 20 de março de 2017


Minha gente, o sétimo já se encontra disponível: Teoria da Perdição Unificada.
Quem tiver vontade de lhe abrir as páginas e snifar o cheirinho a papel, pode encomendá-lo por aqui.
A quem tiver curiosidade, tem disponível a terceira parte do livro: Roncos.
O livro tem 182 páginas, prefácio do grande Pablo Javierpérezlópez, dois "easter eggs" (afinal a Páscoa está perto) e fica a 0,08 cêntimos por página (se a calculadora não me falha).
Não é um livro de auto-ajuda. Não é um mapa para a perdição. Não tem formato para as prateleiras do Pingo Doce. É poesia e há quem diga que nem isso.
Acho que vale a pena, nem que seja para depois se ter uma razão de queixa.

Encomendas por aqui


quinta-feira, 16 de março de 2017

Buracos Negros Em Agosto

Quando não se encontra um espaço comum onde se pisa,
Onde será que estava o sistema na galáxia, a galáxia no universo,
Quando éramos amigos e despíamos as fragas do musgo
E as vizinhas da porca neolítica com a língua de rebuçado,
Tentamos encontrar um tempo comum que a memória
Consiga encontrar no tabuleiro de xadrez saltitante
A que se chama vida ou existência ou isto,
E num momento reorganiza-se a galáxia, o sistema, o planeta
Até ao banco de jardim em Agosto, com as miúdas da capital
Tão frescas na carne e quentes no corpo
Que as convidamos para um filme em tua casa
Que ficou perdido algures num buraco negro.

Budapeste

10.03.2017


João Bosco da Silva

terça-feira, 14 de março de 2017

Ruína À Beira Danúbio

Um dia conto-te a ruína que fui visitando outras ruínas,
Também servi de cozinha a turcos em tempo de guerra hormonal
E sosseguei éguas no templo decadente dos meus dentes tortos,
Cada beijo de bala, perdida ou só para gastar juventude,
Plantar suspiros na lareira da velhice, partir tudo antes da partida,
Ainda estão por disfarçar entre as rugas que os anos pintam de orgulho
E ilusão de sabedoria, nem imaginas o que ocupou o que agora silêncio
Em escuros e vazios quartos, mas um dia conto-te, quando fores relva
Onde turistas bebem e fodem descansados sobre ossos esquecidos
De impérios vencidos, houver Sol que não se vista
Com sabor a cobre e enxofre e o horizonte te seja limpo
Como um que nunca vi em Agosto no meu berço de silvas,
Entretanto afogo-te em promessas vazias que todos os sonhos alimentam
E deixo que te engulam no futuro que também é dos que nascem.

10.03.2017

Budapeste


João Bosco da Silva

sábado, 4 de março de 2017

Radiografia À Porta Da Cagadeira

O que esperas aí sentado nesse bar de imitação de apocalipse, não o de João,
O que a maioria de idiotas que têm poder, porque maiores idiotas lho atribuíram,
Andam a preparar, que fazes enquanto os heróis de infância, imortais na altura
Como os avôs e os amigos, morrem para encher bolsos e falta de imaginação,
O que esperas enquanto o esperma que nunca te morou nos tomates
Seca na pele em que um dia foste dentro, a bebida te aquece e a alma que deixaste
Há meia vida, te arrefece, não esperas o nascer do Sol, esse nasce só em sonhos
E nas memórias de sombras em três dimensões, então é o quê,
O copo vazio e o coração cheio de sangue saturado, um tronco amigo
No monte calcinado pelas ambições pastoras, a coragem de um ponto final honrado,
Se ao menos o mundo todo se desligasse com uns olhos fechados,
Esperas a foto de um filho que nunca geraste à beira do rio, no aeródromo abandonado,
No mar Báltico sueco, esperas o eco da resignação, a promessa que ficou naquela pele
Que agora enruga com os dias, na verdade não esperas nada, queimas,
Como os velhos à sombra encostados às paredes caiadas,
Queimas as páginas que vomitaste, os sonhos que tiveste que rasgar, o amor que azedou
E deixas-te ir até os olhos desencontrados se apagarem definitivamente.

Turku

03.03.2017


João Bosco da Silva