sábado, 29 de abril de 2017

Até Ao Fundo Dourado

“Quero apenas o teu corpo quando o entregas”
Nuno Júdice


Quero apenas o teu corpo quando partes, quando a porta se fecha
E o regresso se torna tão possível quanto a morte,
Quero-te como os anos perdidos em que tudo parecia meu,
Mesmo assim caminhei de mãos vazias e bolsos cheios de buracos,
Quero-te como os lábios daqueles sorrisos anónimos que nunca
Se abrirão para mim e passam num número que logo esqueço
Até a uma periferia de uma cidade que também nunca será minha,
Quero as tuas palavras limpas e frias, sem a contaminação do perfume
Ou do sal, ou de um ângulo familiar de sol no teu cabelo,
Nunca teremos Paris, nem Porto, será sempre nosso o desencontro
E as ruas comuns e tempos que não se cruzam, táxis que nos levam,
Sempre nos afastam e até lhe damos gorjeta por tão bela distância,
Quero que todos os anos perdidos sejam quilómetros vazios
Às voltas no mesmo campo de trigo maduro, onde dormes dourada.

29.04.2017

Turku


João Bosco da Silva

sexta-feira, 28 de abril de 2017

Casa de Campo

para o Carlos Fernandes,

Amigo, resta-nos a memória para resgatar a infância,
Aqueles pinheiros cortados ainda são uma cabana completa
Quando fechamos os olhos num dia quente de primavera,
Contudo relembramos sempre a sombra mesquinha
Que nos tornou a imaginação nesta imitação caquética
Apoiada nos anos do cabelo farto e consistente,
Resta-nos sujar as unhas demasiado curtas para encontrar
Um pouco daquela alma que realmente foi nossa
Antes de nos vendermos por imitações de sonhos,
Só porque mais à mão de a abrir e deixar tudo por uma amostra
De infância, um primeiro beijo, todas as primeiras fodas
Que se adiaram numa desilusão apressada de demolição cansada
Em quem se ia tropeçando nas pernas abertas,
Resta-nos agora a casa de campo, a miniatura que as sete moedas
Furadas nos permitem, por tão pouco vendemos a inocência,
Mas ainda conseguimos vê-la no assobiar do vento nas linhas de alta tensão
Por cima de mais um pouco de infância que se cumpre.

Turku

28.04.2017


João Bosco da Silva
Poeta Finlandesa

à Pauliina Haasjoki,

Depois de jantar tínhamos uma leitura de poesia, os pratos encheram-se duas vezes,
Carne, nem vê-la, depois é tão fácil um perder-se pelas ruas de Lisboa,
Tropeça-se numa cervejaria e o sabor da cerveja mais verdadeiro que qualquer poema,
Especialmente quando se respiram mortos iluminados por outras drogas,
A poeta finlandesa inclinada sobre o copo de cerveja como sobre uma flor,
Saltando de tema como um electrão excitado, fomos perdendo a linha do tempo,
E não se esperava que era de esperar que a leitura fosse encurtada para metade,
Quando chegamos já estavam no vinho e no bolo, o amigo poeta não nos censurou,
Mas via-se triste, a poeta finlandesa foi apresentada a grandes e a menores,
Medindo influências e outro contrabando, de fita métrica no bolso a tirar medida
A olho, ela mostrou-se imune ao brilho do vidro e do diamante,
O vestido dela esvoaçou quando lhe entregaram um copo de vinho verde,
Pensei que por virmos tarde já não tínhamos direito, os tugas cedem sempre a uma loira,
Aí sorriu-me como uma menina com um grande chupa-chupa na mão,
Nunca tendo lido dela um verso sequer, finalmente encontro uma poeta irmã.

28.04.2017

Turku


João Bosco da Silva

quinta-feira, 27 de abril de 2017

1930 – Confissão

Só não me perdoo os pecados da infância, como aquela vez num intervalo da 3ª classe,
Em que rodeamos a miúda pobre da aldeia vizinha, cujo cabelo tinha sido cortado à naifada
Com uma tesoura de tosquia por causa dos piolhos, mijamos numa garrafa de plástico
E batemos-lhe até ela dar um gole de mijo de garoto, não me lembro de lhe ter batido,
Lembro-me que não chorou sequer e que engoliu com resignação de condenado
A sujidade das nossas almas pequenas, estes pecados nunca confessamos aos padres
E a hóstia lá ficava presa ao céu-da-boca, o único a que teremos direito,
Custa-me perdoar estes pecados vestidos de inocência e crueldade,
Mas não é o meu perdão que procuro, há sombras que justificam o meu abismo,
Se alguma vez leres isto perdoa-nos, mesmo que soubéssemos bem o que fazíamos.

Lisboa

24.04.2017


João Bosco da Silva

quarta-feira, 26 de abril de 2017

Antes da Liberdade

Amanhã é dia de revolução e liberdade e aqui neste parque pintado de verde,
Suspiro por ter os dentes graníticos enterrados na frescura que renasce da loucura
Incendiária dos verões, passam pombos à pata, passam pessoas voando por dentro,
Outras enterradas nos escombros de sonhos que persistem em ser relíquia
Depois da sua impossibilidade confirmada, amanhã muitos irão festejar o que não têm,
Outros o que vampiricamente chupam aos outros, alguns dirão que para chegar a isto
Mais valia deixar andar e no fundo é assim que o mundo corre até cair num buraco fundo
De esquecimento, amanhã o parque continuará verde e pintado
E a bandeira será uma despedida baloiçante e tão familiar como um ente afastado.

Lisboa

24.04.2017


João Bosco da Silva

sexta-feira, 14 de abril de 2017

Voyeur

Uma loira acende um cigarro na varanda, passa uma mulher com um colchão na cabeça,
O semáforo dos peões fica verde, ninguém atravessa, começa a cair uma neve desavergonhada,
Um par acaba as cervejas e trocam olhares nervosos de quem não sabe o que fazer com a boca desocupada,
O homem vai buscar mais duas bebidas e respira de alívio, entra um grupo de estudantes de arte
E sentam-se à janela a esboçar, uma delas com o cabelo azul-bebé, um deles olha para mim e sorri,
Vê-me de caneta na mão, uma loira regressa de fumar, está só, vai buscar um café, entra quem ela esperava,
Tem um canino encavalitado, não consegue agora conter os dentes em alvoroço, um dos pares vai-se embora,
Se calhar o nervosismo era aborrecimento dele, o pé finalmente parou, separam-se na rua sem beijo
E ela logo pega no telemóvel quando ele entra no carro, uma das estudantes está a deixar secar a tinta
Da ponta da caneta, está à espera que a mosca da inspiração lhe entre na boca, lembro-me de Bukowski,
De uns poemas de Bukowski, da visita num dia cinzento como este, já me começa a doer a mão,
A loira continua a fumar na varanda, a outra loira sorri de café nas mãos, a de cabelo azul continua
A procurar a mosca no ar, desta vez atravessaram no semáforo verde, agora uma miúda espera o próximo
Enquanto fala ao telemóvel e dois flocos de neve caem um de cada lado dela, a loira entra em casa,
A loira abre as pernas em direcção ao amigo, os estudantes de arte bocejam, menos dois que se engatam,
Descanso a mão para a punch line, a neve continua ridícula, os peões atravessam, dois miúdos sentam-se
Onde estava o par sem vontade, a loira acende a luz, muitos cigarros foram os últimos, muitos os primeiros,
Muitas passadeiras as últimas travesseias, muitas portas fechadas as últimas despedidas que se batem,
Muitos olhares que nunca mais neles, muitas vidas que se apagaram entre uma luz vermelha e verde,
No entanto, a vida continua, sempre e alguém se sentará nesta cadeira, ainda antes de ela arrefecer de mim.

Turku

14.04.2017


João Bosco da Silva
Andar Mal Das Tripas

Estou a uma semana de Portugal, ando fodido das tripas, só me sai merda,
Há quase duas semanas que não me sai um poema, bom ou mau,
Tenho fumado pouco e a contragosto, apanhei o vício dos dezasseis anos,
Qualquer dia volto a ficar invisível, até os olhos se me apagam,
Um bêbado cumprimenta-me e dilui-se no sofá e a empregada pergunta-lhe
Se está cansado, eu morro consumido por este tédio, farto de ir em primeira
Pela ribanceira abaixo, onde até as cabras se viam sem salto bailarino
E esta dor debaixo das costelas flutuantes, manias celestiais,
Num ping-pong que nunca aprendi a jogar, ora um lado, ora outro,
Ora medo, ora vazio, e tenho andado neste desporto de perdição
Há demasiado tempo, até o sofá em casa se ressente, anda farto de cu,
A cama não aguenta as manhãs azedas, parece que só nas madrugadas solitárias
De luz apagada não incomodo a mobília, às vezes lá ouço o queixume de uma sanita vizinha
A levar com uma mija depois da foda, ou daquelas meias sonâmbulas,
Depois, tudo só paredes outra vez, entretanto, lá fora, nem sei se chove se faz sol,
Só sei que estou a uma semana de uma caganeira valente.

14.04.2017

Turku


João Bosco da Silva