quinta-feira, 27 de julho de 2017

Andorinhas e Detergente no Hipocampo

Onde será que se atrasaram as andorinhas, em que verões se terão apaixonado
Apressadamente, antes que as primeiras tempestades de setembro lhes
Desfaça o eterno amor de barro nos beirais esquecidos dos dias de vento,
Para que chegam agora, já lentas, trazendo as catástrofes humanamente naturais
Vindas dos excessos de história e outras saturações civilizacionais,
Para onde espantam os tímidos bebedores de sangue que mal vibram
No ar que o Sol já menos lento, se apressa em cobrir de prata fria e sono,
Que segredos gritam, trazidos de verões que ainda vão a meio, vidas que findam,
Há dez anos que ficaste num verão que só a música na sombra de um dia quente
Me traz, porque alguém tinha esfregado o passeio em frente e abri a janela para que a vida
Me entrasse finalmente dentro, lavada, o sol brilha só quando se tem luz dentro,
A primavera chega e parte sem uma andorinha, a vida encerra-se desvivida,
Só porque se acreditou que a vida um livro de vários volumes, outro filme,
Noutro filme, os anos nunca se atrasam e há um Inverno que não acabará.

Turku

João Bosco da Silva


27.07.2017

segunda-feira, 24 de julho de 2017

A Chester Bennington

No ar de Agosto havia aquela cheiro familiar à anormalidade dos incêndios,
Fazia parte do verão como os escorpiões na escadas, a música ruim nas ruas,
Que se entranhava na alma esponjosa mais facilmente que poemas imortais,
Havia a interior promessa de beijos roubados e o cheiro a perfume na palidez
Do sotaque francês, havia a longa caminhada seguida por incenso
Empunhando uma cruz metálica mais pesada do que os pecados cometidos
Entre as cuecas e a vontade das garotas que iam dormir lá em casa em noites de luar,
Havia todo o tempo do mundo, para tudo, as mãos ainda com espaço suficiente
Para agarrar quase o mundo todo e o coração cheio das certezas que nos ensinaram,
No entanto, deixou-se cair a cruz, os lábios que se humedeciam na língua
Não aqueles que a fome pedia, as certezas trocaram-se pela verdade do vazio,
O mundo tornou-se num castelo de cartas num vendaval, procuraram-se
As perdições alheias em páginas que dificilmente se encontravam em terra de brutos,
No espelho tomou forma uma presença que sendo tudo, não era nada,
A morte derrubou as torres do grande império e os reis começaram a injectar medo
Nos peões do tabuleiro, surgiu o poema, o vestido, o muro de pedra, caíram amizades,
Cresceram as dioptrias, os dióspiros ainda longe de maduros, tudo se tentou
Nas noites de insónia, sem mover um músculo, enquanto os grilos na rua
Semeavam o gosto futuro por filmes a preto e branco japoneses,
Nisto uma presença gritante, sempre, naquele quarto escuro e fresco,
Enquanto um mundo ardia e outro se desmoronava, alguém gritava o que as noites
Cobriam de escuridão, alguém que afogando-se em si mesmo, era uma mão,
Alguém que acabou por deixar de tentar acabar o castelo de cartas num vendaval
E se pendurou, alma e tudo, levando com ele uma parte de todos os desconhecidos que tocou.

24.07.2017

Turku


João Bosco da Silva

domingo, 23 de julho de 2017

Sala De Espera

Quando é que os dias se tornaram numa sala de espera bafienta, escura,
Com mobília dos anos 70, onde zumbe já faminto o caruncho dos ossos,
Esperando que a porta se lhes abra e seja chamado o nome
À consulta kármica, para se receber um frasquinho com meia dúzia de dias felizes,
Depois deste volte cá e espere, a porta da rua está sempre aberta,
E lá fora ninguém, nada, a saída definitiva para um dia infinito e vazio,
Quando é que todas as revistas se tornaram sobre vidas desinteressantes,
Como espelhos ou então exemplos de todos os fracassos que se acumularam
Em nome de te tornares no que hoje és, algo afundado num sofá
Com as mãos sobre os joelhos, procurando encontrar em que linha te despistaste,
Como quem perdido num dia de chuva, procura encontrar o caminho
De volta, com um mapa ao contrário de uma outra cidade,
Quando é que surgiu esta vontade de saltar por cima de bocados enormes de vida,
Estações inteiras, companhias decentes, a fruta quase toda para o lixo
Na esperança de uma gota destilada de um Sol que se sinta tocar
Algo que enterramos há muito, bem fundo, só porque não se sabia, como nada se sabe
E por cima de toda a ignorância, erguemos este castelo de certezas e esperamos.

23-07-2017

Turku


João Bosco da Silva

quinta-feira, 20 de julho de 2017

Primavera Paris Verão

Primavera

Muito tarda
o canto do cuco
em chegar ao norte.

A gengiva sangra
o sangue cospe-se
o dente fica.

É disto que te
estava a falar –
então acordo.

Não há adubo
que salve
a planta que secou.

Uma motosserra vizinha
e o meu pai
mais perto.

Seu mundo verde
e o meu
de distância.

A noite apaga-nos
os sorrisos –
que luz nos resta?

Não sorrias como se a noite
não te espere
no fim do dia.

Precisamos uma loucura
que nos salve
desta vida.

Eles regressam
a casa –
faço disto o meu mundo.

Só há verdadeira
paz
no cansaço.

São o lugar comum
que nos resta –
os sonhos.

Paris

A vinha de Montmartre
e um copo de vinho
ao Sol.

O verde antes
do palácio
satura os sentidos.

Salta a rolha
da garrafa de champanhe –
cabeça real no cesto.

Tosse o verde
cansado
de tanta pressa.

Verão

Tão pouco reino
para tanta
rainha e princesa.

Nas asas de uma borboleta
apenas pó
colorido.

Afogado em verde
o cavalo
não liga à solidão.

Verão no calendário –
pingos na lata
do coração.

Uma interrupção
consciente
na eternidade.

Chove nos paralelos
quentes –
gasta-se a vida.

Tanta água
nos passou
nas mãos vazias.

Vão e vêm
as ondas
do mesmo sangue.

Fecham-se portas –
novas flores
nascerão.

Na areia a pegada
apaga-se –
quem me recorda?

O Inverno
tão certo
como o esquecimento.

A felicidade –
isto com uma erva
na boca.

Riscar areia
com um pau seco –
poesia.

Turku-Paris-Helsínquia-Savonlinna

Maio – Julho 2017


João Bosco da Silva
Regresso Aos Dias Quentes

Quantos dia nos passam nas mãos vazias e as tornam menos nossas,
Quantos verões gastos no salto entre sonhos, quanto se deixou cair
Entre as almofadas dos sofás emprestados, para se ter uma amostra de regresso
E a certeza da sua impossibilidade e há tantos, tantos invernos
Que não a vejo a sorrir que todo o sol perdeu a força verde na pele para a terra,
Só as canções não mudam com as décadas, já o amor, esse é uma pegada na areia
Num belo dia quente, quando o inverno parece algo incerto num passado alheio
E se ignora como o esquecimento tão certo como a ausência.

Savonlinna

14-07-2017

João Bosco da Silva
Lavagem Dos Paralelos Em Julho

Naquele verão li uma pescaria inteira encostado a um choupo
À sombra da infância, enquanto ouvia inconscientemente
Os púbicos a crescer nas virilhas adolescentes das amigas da minha irmã
E o rio passava levando os segundos todos aos assentadores de paralelos
Que fazem estradas até verões chuvosos, devem andar todos fartos
Daquele verão tão espremido em ângulos diversos e vertido
Em versos parecidos a mais nada para ocupar a inocência silenciosa
De umas linhas em branco, já não estou habituado a viver,
Só sinto o sabor do que mordo, quando depois do sangue já coagulado,
Passo a língua nos dentes palidamente metálicos com um gosto
Já a melancolia e passado, moedas de cobre fora de circulação,
Só pelo filtro da saudade consigo perceber um dia de Sol
E estes verões de agora, longos fins de Setembro mas sem as tempestades
Das fomes adolescentes, só humidade nos ossos e cansaço nas bentas
Que viram tão pouco e parecem ter passado por tudo.

Helsínquia

13-07-2017


João Bosco da Silva

sábado, 1 de julho de 2017

Duas Cidades

Moras-me em duas cidades, no Porto, a que conheci entrando sala adentro
Levitando numas allstar velhas, a que senti dentina no lábio inferior,
A que desejei em versos e noites acendidas com mensagens tímidas lidas
Por namorados barbudos que te tinham de mão cheia e sotaques perfeitos,
Com quem bebias champanhe e fodias em carros pequenos,
A com quem sonhava Paris em águas-furtadas forrada com livros e sonhos,
Com quem jantei uma fome enorme vencida pelo medo da mesma vontade,
A outra mora em Paris, a que arrastei comigo e que nunca consegui apagar
Com a carne das outras, a que pinto com histórias que não vivi,
A dos sonhos recorrentes e do sorriso que já não me pertence, impossível,
A que ficou latejante na memória do sangue que se renova e nos afasta,
Que encontro numa reunião quântica na permanência das sinapses
Nas ruas onde estivemos em tempos separados, numas águas-furtadas
Onde alguém bebe o vinho da garrafa que não se abriu, enquanto outro 
De olhos fechados e em voz alta todas as palavras que não se trouxeram,
Na verdade não moras em duas cidades, és a ponte, em mim, entre a memória
E o sonho, o passado e a ausência, a ponte onde me és possível e presente.


Turku

20.06.2017


João Bosco da Silva
Dia Curto

Temos os dias contados neste mundo e os nossos paraísos ficarão esquecidos
Nas nossas fotografias de família, aquele rio, aquela figueira sem Judas,
O rio já seco que ninguém visita e muito menos imagina a felicidade que um dia 
Foi capaz, os peixes pó no esquecimento, os lobos uma memória antiga,
Tudo antes dos nossos ossos farinha e o nosso nome apenas isso,
Duas datas como no poema de Caeiro, se alguém se der ao trabalho
De ler pedras enquanto velas esperam dias de chuva para durarem mais que a vida.

22.06.2017

Turku


João Bosco da Silva