quinta-feira, 19 de outubro de 2017



Dizer Tudo



Podia falar-te da fome a que me obrigo por sono, cansaço, preguiça,

Pelas mão cheias do Sol que partiu, que parte sempre e fica

Na pele apenas a ilusão de um beijo que foi apenas uma promessa

Vazia para algo mais, uma queda de alma abaixo, uma mancha

Que cresce onde nunca permanecerás, na fronteira entre deus e nós,

Podia falar-te da fartura, dos dentes cariados e das noites à beira

Da avalanche, da esgrima entre o medo e o desejo cego mas consciente,

Das mãos certas para a derrota que procuras em fios de ouro

Perdidos em noites solitárias que o luar não pinta da cor que merecem,

Podia falar-te dos dias que te guardo e que são todos os que não viverei,

Mas prefiro olhar-te e decorar o vortex da tua íris no último olhar

E dizer-te o contrário do que vejo quando me perguntas quê e te respondo Nada.



Turku



16.10.2017



João Bosco da Silva

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Quase Reguada 

A vez em que quase levei uma reguada na primeira classe, 
Foi por causa da mania de mandar à minha mãe partir as sandes 
Que levava para comer no recreio, enquanto os mais velhos 
Brincavam à matança do porco com os mais fracos 
E os carros passavam com pobre contrabando oculto nas malas 
Vindos da galiza ou do outro lado do rio como lhe chamava, 
Era proibido levar brinquedos para a escola, aquilo era um lugar sério 
E a professora comia bolachas de água e sal, 
Por altura do Natal, levei um carrinho de brincar, que tinha recebido 
Numa festa da Guarda Fiscal, não estava partido como as sandes, 
Mas também era para matar uma fome e acender os olhos do meu amigo 
Mais pobre, a régua quase que me fazia arrepender da bondade, 
Não fosse o meu amigo, experiente em mãos quentes, ter intervido,
Explicando à professora que se tratava apenas de metade de uma sande. 

Turku 

16.10.2017 

João Bosco da Silva

E Agora Quê?



E agora quê, essa carne toda, quantos suspiros, quantos olhos fechados

Apertando miséria, quandos tiros no escuro a ver se caías na rede

Das fomes alheias, esses sonhos todos largados dessas mãos lívidas,

As unhas não crescerão mais, a carne é que seca, encolhe, os vivos

Continuam a crer nas ilusões que quiserem, menos essa carne que alimenta

Vermes como desejos, nunca mais as lágrimas serão tuas,

Nas dos outros apenas uma imagem de ti, nunca verdadeiramente tu,

E agora quê, esse sangue que tantas vezes insuportavelmente quente,

Essa pele que agora nada mais que cera amassada em cinza e eternidade,

Uma eternidade real, longe da que se canta ao lado do amor,

Esse que seca mais rápido que o sangue ou as lágrimas,

E agora quê, que nada mais vale a pena, nada mais valerá a pena,

Que não beberás da dor que fica nos outros, mas que também passa,

E agora quê, depois desse último grito quando ninguém estava.



Turku



30.09.2017


João Bosco da Silva