sábado, 30 de dezembro de 2017

Partida 

Quando parto, todas as caras estranhas me parecem feias, 
Todos os cus um volume amarelo de gordura que alivia o peso de ser 
De cada um e lhes dá vontade de encher este mundo de mais idiotas, 
Quando parto, todas as lágrimas me são estranhas 
E apenas compreendo a tristeza das gotas de chuva nos vidros 
Dos autocarros ou a distância da montanha, pintada na janela, 
Que se cobre de neblina com medo das saudades, 
Quando parto, parece-me sempre que nunca chegarei 
A lado nenhum, fico em vez em equilíbrio entre o adeus 
E o próximo abraço, tão incerto como o próximo passo, 
Quando parto, lembro-me de todos os gatos mortos 
E dos seus últimos olhares cheios de eternidade, 
Quando parto, parece que vou despindo a alma pelas montanhas fora 
E quando chego, não sei mais quem me fui, só onde me deixei. 

Lisboa-Helsínquia (Espanha) 

28-12-2017 

João Bosco da Silva 

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Tons De Verde Fígado 

Regressava da escola para o almoço, deviam andar pela 4ªclasse, 
Ao pé do jardim do quiosqueperto dos caixotes do lixo, 
Um homem no chão, de galochas, estaria morto, seria aquele 
O meu primeiro morto, gente na esplanada do café da esquina, 
Riam, não podia estar morto, mas no mundo não estava, 
Não naquele momento, continuei e fui para casa, 
A minha mãe disse-me que era um bêbado duma aldeia vizinha, 
Que estava bem, ao voltar para a escola já não estaria lá, 
Mas a beber mais um copo de vinho numa tasca ali perto, 
Tinha razão, quanto ao vinho não sei, soube mais tarde 
Que o meu avô ficaria para sempre deitado por causa do vinho, 
Mas ao contrário do homem das galochas, o meu avô 
Ficou verde antes de cair e tinha um cheiro ruim, mesmo longe 
Dos caixotes do lixo ou das galochas soldadas aos pés, 
Anos mais tarde, vi aquele mesmo homem, tão longe, 
Em Seul, deitado no meio do passeio de manhã, perto do 7eleven 
De Donhwamun-ro, gente comia comida de rua ali perto, 
Caminhavam, enquanto ele abraçado a uma garrafa verde de soju, 
O chão do mundo, o mundo inteiro, ali estava o homem das galochas, 
Afogado em sonhos que só ele sabe que perdeu, 
O meu avô agarrado à barriga inchada pelo fígado que desistiu, 
Um desconhecido num país estranho a conhecer o meu olhar de 4ª classe, 
No chão das cidades onde todas as almas perdidas se encontram. 

20.12.2017 

Turku 

João Bosco da Silva 

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Primeiro Café 

Houve um tempo em que gostava de me fazer de puta fina, 
Que as estrangeiras me pagassem o táxi ou as estudantes a pizza no turco, 
Agora basta-me o sossego de um dedo agitado, 
O que o olhar da minha mãe me traz de longe, 
A certeza da eternidade que ainda é do meu pai, 
Os sonhos que trazem Sol à madrugada gelada 
E um primeiro café depois de mais uma última noite, 
Mais um fim que se arrepende num amanhecer 
E na mesa de cabeceira aquele livro de sempre, aberto, 
À espera de mais um dia que fique, mais uma passagem 
Pelos olhos emprestados por todos aqueles que fui 
E os que ficaram de ser, para que a almofada 
Me possa reconhecer o hálito dos dias que me foram engolindo. 

Turku 

17.12.2017 

João Bosco da Silva