terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Tropeço Em Crónica

Despejavam-se os sacos de roupa no chão e o que mais me incomodava
Era o cheiro a estranho, aquele cheiro típico que é uma mistura da dieta,
Do detergente da roupa, do sabão, dos perfumes, da actividade física
E outros hábitos nocivos, aquele cheiro como uma assinatura,
Como os cheiros a casas alheias, ou até da própria depois de uma ausência prolongada,
Eram calças, camisas, camisolas, t-shirts, quase tudo números acima,
Teria que se esperar por mais uns centímetros de carne e osso,
Isso mais uns meses e dás um pulinho, no calçado colocava-se algodão nas biqueiras
Para não incomodar o ar com as unhas, não me lembro de cuecas,
Já chegava andar com o cu das calças de bombazina roçado por outro cu,
Já bastava aquele cheiro que parecia indomável ao sabão e à água fria do tanque de pedra,
São coisas boas, caras, de marca, e até eram, as peças rejeitadas dos senhores doutores,
Dos emigrantes, dos das cidades grandes, o pedaço de pão que não se acaba por luxo
E se atira aos pombos, mas era uma esmola sempre paga, batatas, azeite, vinho,
Um agradozinho para fazer o papel de pobre, a mim restava-me a vergonha
De se me descalçar um sapato ao andar ou que o antigo cu reconhecesse as calças
E tropeço agora numa crónica do António Lobo Antunes na qual me dou conta
Que fui, sem o ser, um pobrezinho de estimação.

Turku

24.01.2017


João Bosco da Silva