quinta-feira, 29 de março de 2018

Comprar Batatas

Com a mão num saco de plástico e enfiando noutro as batatas,
Lembro-me das manhãs que se acendiam lentamente,
E da terra que se lavava do corpo adolescente no rio,
Agora só encontro essa próximidade com a terra
Quando lambo uma ferida que sangra num dedo,
Ou o mesmo dedo depois de dentro de alguém que arde,
Nessas gotas espalhadas pela minha pele desconhecida
O sabor familiar de toda a terra e o aroma fértil da vida.

Turku

26.03.2018

João Bosco da Silva 

quinta-feira, 22 de março de 2018

Salpico 

Pergunta-me na língua dela, se o esperma também voa 
Nos meus poemas, digo-lhe que nem sempre, 
Há mais versos que são lágrimas que ficaram por se mostrar 
Ao mundo do que futuros salpicados em páginas de dias vazios, 
Compreendo a pergunta, já que nunca me viu chorar 
E enquanto escrevo isto, tenta raspar com as unhas 
Um verso agarrado ao peito. 

15.03.2018 

Turku 

João Bosco da Silva 

sábado, 10 de março de 2018

Livro Favorito

Também foi o meu livro favorito, entretanto o pó acumulou-se,
Outros vieram, os anos passaram e as ruas foram varridas tantas vezes,
Os olhares tornaram-se inócuos e os sorrisos irritantes,
Tentei ser-lhe fiel por muitos anos, mantê-lo entre os cinco primeiros,
Aos menos, por consideração, por ter sido o primeiro livro favorito,
Enquanto morria debaixo de uma árvore, até se aprendeu
Que cada mulher um sabor diferente, um cheiro diferente,
Não apenas aquele que ficou agarrado às páginas do livro favorito,
Também foste a minha mulher favorita, mas a capítulo tal acabaste,
A guerra também e os sinos, nem me lembro se tocaram,
Depois alguém pegou em ti e te leu, não sei quanto gostou,
Ou se foi para passar o tempo ou um longo Inverno,
O cheiro do mosto veio dar o golpe final ao Verão, novos tropeços
Felizes e infelizes, contudo não te esqueci, continuas a ser
Aquela língua favorita, aquele levantar de anca na passagem
Das cuecas pretas, continuas a ser o livro favorito
De um morto que me habita, só te peço que te lembres do meus olhos.

Turku

10.03.2018

João Bosco da Silva
Espelho Negro

Que sabemos nós da distância, filhos do imediato, mestres do esquecimento,
Consumidores ávidos do amor de uso único e das religiões fast-food,
Com que lágrimas choramos os ossos que acumulamos em montes organizados
E floridos, pintados de verde e rodeados de muros altos para que
Não nos incomodem em dias de semana ou quando não estamos
Com disposicão de ser mortais, as flores já podres evitam-se
E os espelhos agora substituem-se por um rectângulo inteligente
Que nos cobre as imperfeições e nos tornam no sonho de quem não nos conhece,
Despimo-nos como abrimos um pacote de batatas fritas
E deixamos no copo sempre aquele último gole, alimentamos sedes
Para iludir a nossa humanidade essencial, não temos que lembrar mais,
Somos mais olhos que barriga, especialistas em abrir caixas de bombons 
Que nunca conseguimos acabar, sempre certos, cada um com a sua verdade,
E que sabemos da distância, quando está tudo a um passo da vontade
Que tanto nos falta, porque temos os cordões desapertados,
Amanhã dizem que chove, tinha ficado de, acabei por, temos que, noutro dia.

10.03.2018

Turku

João Bosco da Silva

segunda-feira, 5 de março de 2018

Amarelecer 

Chegas a um ponto em que deixas de procurar o sabor da primeira cerveja, 
Em parte, porque é inútil, a mesma língua não reconheceria essa outra boca, 
Como o Sol não reconhece todos os dias esses mesmos olhos 
E o seu acumular de fracassos por trás da cortinha dos sorrisos que insistes 
Em acender contra o vento de anoiteceres longínquos, 
Encontras-te sempre renovado num par de meias lavado, 
Num gesto que tantas vezes repetiste que se tornou em mais um dedo 
Ou um cabelo que nunca caiu, que te prende a queda como um amigo 
Que se lembra que ainda respiras e com quem partilhaste o mesmo 
Combustível em anos de incêndios e geadas dolorosas, 
Aprendeste muito mais com as mãos vazias, com os bolsos cheios de cotão, 
Paredes nuas em quartos pequenos e quase silenciosos, 
Não fosse a má canalização e os vizinhos cheios de vida e mijo, 
É difícil reconhecer o esquecimento como aceitar o que o espelho te apresenta, 
Parecem impossíveis os anos, tantos para chegar a tão pouco, 
A conservação de um nome, meia dúzia de festas em família, 
O tempo é um velho que te surpreende com um sorriso desdentado, 
Estranho mas ao mesmo tempo familiar, não passas de uma varanda 
Cheia de garrafas vazias à espera do verão ou da vergonha, 
Mais um sonho encravado nas costas que só os outros percebem 
E um copo partilhado com o fôlego que soprou a vida há muitos anos, 
Numa tarde gelada, enquanto esperas pelo sabor da última cerveja. 

Turku 

05.03.2018 

João Bosco da Silva