segunda-feira, 18 de junho de 2018

Sem Razão 

Pensei que tinha algo para escrever quando abri isto, depois lá me distraí 
Com uns ódios de estimação, também não tenho nada novo a acrescentar, 
Vivemos num tempo em que para criar algo realmente, precisamos de cinzas, 
Chegamos ao ponto em que só incendiando todos as bibliotecas, 
Encontraríamos uma voz realmente própria, depois culpam-nos, 
Imitação barata deste, queria ser como aquele, devia mais isto ou aquilo, 
Eu acho mesmo é que não devia nada, de todo, todos têm mais certezas 
Para dar e eu mal vendo uma remessa de dúvidas por ano, 
Contudo, mesmo sem nada para escrever, acabo por usar isso 
Como quem sopra no aerogerador para carregar nos pulmões o próximo fôlego. 

18.06.2018 

Turku 

João Bosco da Silva 

domingo, 17 de junho de 2018

Aniversários 

Quando fiz treze ou catorze anos, recebi uma t-shirt azul de marca, 
A primeira a sério, a marca quase morreu, hoje mantém o nome, 
Os donos devem ser outros, cheirava a alegria nova, 
Os meus amigos chutavam uma bola no caminho, 
Enquanto esperavam que a minha febre baixasse, 
Ouvia a felicidade do mundo pela janela, o presente à espera, 
A morte sempre tão próxima, não sei se a tenho enganado 
Todos estes anos, se ela me tem enganado a mim, 
Apesar do sabor metálico dos canos entre os dentes 
Até a sombra passar antes de um último movimento de dedo, 
Da vontade do salto de cabeça da varanda da irmã, 
Das garrafas ondulantes Inverno fora e dos cigarros 
Como a maioria dos amigos, durei mais que a t-shirt, 
De certeza que ainda me serviria, só engordei uns dois anos de corpo, 
A alma, essa, parece um farrapo maltratado por tempestades de verão, 
Contudo pesa toneladas velhas, como aquelas carrinhas 
Que com o motor podre, iam de aldeia em aldeia, comprar ferro-velho, 
Aos catorze anos já morria, desisti de muito amor por sentir 
Que a minha eternidade não seria suficiente, bebo o Sol como se fosse 
O último e isso me matasse, se ao menos tivesse aprendido 
Outra forma de enganar a morte além desta. 

Turku 

12.06.2018 

João Bosco da Silva 

quinta-feira, 14 de junho de 2018

Paterson Revisitado 

Hoje, entre a incerteza de mais um cigarro e uma página alheia, fecho o Paterson 
Só porque o sistema límbico me sussurra a memória de um cheiro de um sabão de Marselha, 
Contudo acabo por acender mais um cigarro, não uso os fósforos azuis, 
O isqueiro é como a vida, sempre cheio até que se acaba subitamente, 
Um fósforo é mais como alguns amores, não os que deixas à chuva, 
Tudo tem possibilidade de se acender, nem tudo de incêndio, tudo tem a certeza 
De se apagar, como um poema com uma garrafa vazia ao Sol, que se acende 
Nas cinzas de um outro escrito há um ano, sobre o sabão que se gastou 
E na pele apenas a vontade de mais um banho, seja com que sabão for, 
Recicla-se a vontade como se reinventam os dias, semeando a ilusão da eternidade,
Nos nossos dedos insatisfeitos, arde uma página pequena, segue-se outra, 
Coberta pela irremediável necessidade da tinta, o livro azul chama a alma à limpeza, 
Nada pode salvar o amor quando se cansa, só se aguenta o filtro na boca por distração 
E o poema termina como tem que ser, mesmo que nunca tenha tido razão para um primeiro verso. 

12.06.2018 

Turku 

João Bosco da Silva

sábado, 2 de junho de 2018

Poema De Espera

Este é daqueles poemas de espera, dos que se escrevem quando
Não se tem um livro à mão, quando a cerveja exige companhia,
Podia estar à espera da abertura de umas pernas,
Ou de uns olhos que se fecharam para sempre,
Podia estar à espera da abertura do tasco da terra
Para adiar a ressaca mais umas horas,
Ou do autocarro que me leve de mim a mim e nunca chega,
Podia estar à espera de um sorriso que se apagou,
Mas não, estou só à espera que a óptica abra
Para ir levantar os óculos com as lentes novas,
Com as anteriores, via demasiado e não tinha espaço para versos.

Turku

01.06.2018

João Bosco da Silva