quarta-feira, 25 de julho de 2018

Hotline Miami 

Ainda me lembro de ti, quando me disseste, não pertences aqui, 
Em forma de elogio, de certa forma encontrei-te, longe, 
Sem te ter tocado com um dedo, por causa do médico turco, 
A tua amiga mortinha por dormir, o teu carro cheio de tralha, 
Porque tenho sempre alguém a dormir na minha cama, 
Quando me posso perder tão facilmente em futuros habitantes 
Da minha almofada vizinha, sempre fui menino da mamã, 
Agora sem deus, agora sem ser capaz de aceitar um abraço, 
Agora alérgico a tudo que cheire a carinho, 
Já vi sacos de lixo mais amorosos que eu, 
Mas na verdade eu quero é ver as cinzas que restam, 
Não estou aqui para acreditar em dilúvios, 
O rapaz já gastou esse trunfo, se chovesse o que já bebi sem sede, 
O que dá uma sede que sabe ao castigo por gula, 
Afogávamos tanto santo nesta terra de pardal aldrabão, 
Já vou noutro, espera, vou ali encher o copo de escocês. 

25.07.2018 

Turku 

João Bosco da Silva 
Distâncias 

Para a Tatiana Faia e o Vítor Sousa, 

Quando um gajo está que nem se sente, é quando se encontra, 
Seja no vazio de uma página em branco com um tracinho vertical a piscar, 
Ou num corpo pálido com um tracinho rosado e pupilas a piscar 
Na escuridão possível de uma noite nórdica, 
O cansaço ajuda-nos a extrair o maior orgasmo, aquele em que já 
Nem se acreditava e quando vem, parte-nos a alma vendida 
Por meia dúzia de batatas fumegadas pelo motocultivador, 
Numa mão cheia de ressentimento, quanto aberto foi deixado 
Por entrar, quanto descoberto era já uma ilha da Páscoa, 
Todas as conquistas um naufrágio mais certo, 
Todos os sonhos uma almofada babada, todas as amizades 
Meia-dúzia de lágrimas engolidas pelo ralo, num duche longo, 
Mais longo do que o que muitas vidas merecem, 
Burroughs afina mais a gravata do que a mira, 
O isqueiro acerta sempre no prego, haja amizade e cidades comuns, 
Mesmo que tão estrangeiras quanto o castelo do berço, 
Saúda-se o vazio, onde é mais provável encontrarmos 
Tudo aquilo que uma vez amamos, ou nos amou, 
Quantas vidas cabem afinal no mesmo ukiyo-e, 
O mesmo bloco de madeira para tanto papel, de onde a árvore, 
Não vale a pena, cogito ergo sum uma merda, 
Sou mais quando menos me sinto, quando me afasto, 
Ou me afastam, entre um copo com a desculpa da amizade, 
Ou o esforço da solidão maior para encontrar o caminho na página em branco. 

25.07.2018 

Turku 

João Bosco da Silva 
Os Cães De Kafka 

Porque me olhas com essa cara Kafka, levei 16 anos a chegar ao castelo, 
Há tanta ruela por onde um gajo se perder, nem sei como ainda ando na rua, 
Quanto cão vadio já foi lançado da ponte dentro de um saco de adubo, 
Nitrolusal 20.5, dois paralelos roubados do bairro da igreja, 
No verão quando seca tudo menos a vontade, lá se vêem, 
Os ossos a escapar pelos buracos, enquanto fodes uma finlandesa 
Fascinada pelos 36 graus e meio do teu sangue à sombra, 
Sem o teu primo sequer imaginar que o futuro tudo engole, 
Até os dias sem chave na porta, agora essa cara, esses olhos, 
Que eternidade queres enganar tu, já perdi a conta às manhãs 
Em que acordei com um exoesqueleto à volta da polpa do que digo ser, 
O livro emprestei-o demasiadas vezes, duas, nunca mais regressou, 
É um processo complicado este de viver livre do outro lado das grades, 
Troca o passo, vira e volta e às tantas estás onde nunca saíste, 
É engraçado, tudo o que tenta amordaçar um cão sem dentes. 

24.07.2018 

Turku 

João Bosco da Silva