sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Urofilia 

Há coisas que nos acalmam, que nos mantêm afastados da vontade de abismos, 
Como uma cona dourada, algo que nos deixa um anel fresco de caracol quente, 
Sem ter que se ir à lenha, com o maluco da terra a espreitar por um vidro de geada, 
Uns olhos como a saudade do céu no outono com a boca cheia de ti, 
Sem se fartar, o aconchego de uma parede vermelha quando os olhos fechados, 
O sabor raro da vontade na ponta da língua, longe de lamber sêlos sem destinatário, 
A alegria de mais um fio de ouro antes de vestir umas cuecas lavadas, 
Uma estrela do mar de chocolate tímida onde cabe o mundo todo 
Nos alpes transilvânicos e depois um útero cheio das douradas lágrimas 
De alegria dos anjos do apocalipse, em tsunami orgásmico no colchão do hotel, 
Há coisas bonitas como a memória de pinguinhas de mijo em cus 
Quando ainda o tesão algo facilmente suportável como a curiosidade 
Por hóstias consagradas que não sangravam quando trincadas, 
Ainda o cheiro de quem não sabia bem quantas vezes devia passar o papel, 
Atrás da escola primária, cabia sempre, depois três rezadelas profiláticas, 
Para manter o diabo daquele lameiro longe das vacas, 
Há coisas que até nos fazem esquecer dos esquecimentos a que nos obrigamos, 
Por vergonha, por culpa, mas não tão minha grande culpa, mais a que nos foram 
Tatuando no corpinho de leitões, quando uns queriam ser vitelinhas, 
E crescer e levar com touros, acabando eles por se tornarem em touros, 
Capazes de fertilizar, contudo tão estéreis, mamando pela vida fora 
Até a cirrose provar que homens de verdade,  
Podia ter sido tanta coisa, mas não podia fugir ao garoto que tinha tesões 
Precoces quando mijava no mijo dos outros e sentia prazer 
Em limpar os bocados de merda colados à louça com o jacto inocente, 
Há coisas que acalmam, como quem nos deixa cair sobre 
barba de todas as derrotas, o excesso quente dos venenos do corpo. 

16.11.2018 

Turku 

João Bosco da Silva
S.R.T.H.M. Não Um Poema Sobre Cornos 

“E a minha vida prosseguiu, com os mesmos sobressaltos e a mesma sensação de provisório” 
Roberto Bolaño 

Nunca me habituarei a esta vida, cada novo dia, 
Sinto-me menos preparado para o amanhã 
E sei que é coisa que nunca chegará a existir, 
Deixo-me andar, mas custa-me quando vejo 
Os outros tão certos, tão confiantes, 
Como se o fim deles fosse outro que não a morte, 
Como se os amores não acabassem em tédio 
Ou num valente par de cornos de estimação, 
Também esses, invenção nossa, invejosos, 
De certos herbívoros, que procriam livres, 
Mais ainda, quanto maiores os cornos, mas isto, 
Não é um poema sobre cornos, 
Não é sequer é um poema, é uma noite solitária, 
Um copo de whisky vazio, a música de tempos, 
Não melhores, mas agora impossíveis, 
Nada melhor do que isso, daí fazermos de tudo, 
Para tornar a paz em algo impossível, 
Mas ninguém é culpado, ninguém foi ensinado, 
A primeira aula da manhã de segunda-feira 
Nunca foi, Introdução às Técnicas da Vida, 
Depois de Educação Física, nunca se aprendeu, 
Ciências da Amizade ou Sem Religião Também Há Moral, 
Aprendeu-se mais em Educação Visual 
Que nos Domingos de manhã, isto mais nos dias sem aulas, 
Depois, abelha num rosmaninho à porta do cemitério, 
E nisto a vida toda e a morte também, 
Depois de nada, pouco mais haverá de beleza, 
Além da tristeza em meia-dúzia quando sorte, 
Nunca se encontrará nada de novo, 
Seja numa rua cheia de estrelas apagadas, 
Como balões que se esvaziaram depois de cheios, 
Numa região que de tão familiar arde como Agostos 
Em casa, só os gatos parecem mostrar a verdade, 
É tudo o mesmo, às vezes ao sol, às vezes à sombra 
E ninguém gosta de verdade de chuva fria, 
Nunca me habituarei a esta vida em que cada sonho 
Uma derrota na companhia dos cabelos brancos. 

16.11.2018 

Turku 

João Bosco da Silva