segunda-feira, 5 de março de 2018

Amarelecer 

Chegas a um ponto em que deixas de procurar o sabor da primeira cerveja, 
Em parte, porque é inútil, a mesma língua não reconheceria essa outra boca, 
Como o Sol não reconhece todos os dias esses mesmos olhos 
E o seu acumular de fracassos por trás da cortinha dos sorrisos que insistes 
Em acender contra o vento de anoiteceres longínquos, 
Encontras-te sempre renovado num par de meias lavado, 
Num gesto que tantas vezes repetiste que se tornou em mais um dedo 
Ou um cabelo que nunca caiu, que te prende a queda como um amigo 
Que se lembra que ainda respiras e com quem partilhaste o mesmo 
Combustível em anos de incêndios e geadas dolorosas, 
Aprendeste muito mais com as mãos vazias, com os bolsos cheios de cotão, 
Paredes nuas em quartos pequenos e quase silenciosos, 
Não fosse a má canalização e os vizinhos cheios de vida e mijo, 
É difícil reconhecer o esquecimento como aceitar o que o espelho te apresenta, 
Parecem impossíveis os anos, tantos para chegar a tão pouco, 
A conservação de um nome, meia dúzia de festas em família, 
O tempo é um velho que te surpreende com um sorriso desdentado, 
Estranho mas ao mesmo tempo familiar, não passas de uma varanda 
Cheia de garrafas vazias à espera do verão ou da vergonha, 
Mais um sonho encravado nas costas que só os outros percebem 
E um copo partilhado com o fôlego que soprou a vida há muitos anos, 
Numa tarde gelada, enquanto esperas pelo sabor da última cerveja. 

Turku 

05.03.2018 

João Bosco da Silva