domingo, 2 de setembro de 2018

Depois do Meio-Dia 

A hora da partida chega, quando o gato começa 
A aproximar-se de nós outra vez, finalmente, 
Cada reencontro tem já o sabor da despedida, 
Chupa-se a felicidade por uma palhinha fina, 
Numa canícula que parece não ter fim nem ar, 
Só os lugares permanecem, cobertos pela ruína da ausência, 
Cheios de ecos que ninguém ouve, lareiras frias 
E remendos de quem já não tem remédio, 
De tudo, só a dor fica, nada mais é eterno, 
Amizades medem-se com cafés ou garrafas vazias, 
Os cigarros fumados pesam como anos 
Num peito cansado de partidas e outras desfeitas, 
No fundo, quando a tarde cai, é um salve-se quem puder, 
Vendem-se as memórias mais inocentes 
Por um esquecimento breve entre joelhos, 
A verdade encontra-se apenas numas flores cortadas 
Sobre uma mesa raramente viva, 
A eternidade sente-se no luar e nos grilos, 
Acorda-se tarde, acorda-se sempre demasiado tarde, 
Por vezes depois de quatro ou cinco anos, 
Só o gosto amargo na boca justifica o arrependimento, 
As horas passam e sempre a possibilidade da última 
Na próxima, o gato roça o pêlo na perna nua, 
Está na hora de plantar um novo esquecimento. 

Torre de Dona Chama 

27.08.2018 

João Bosco da Silva 
Manhãs Perdidas 

Raras são as manhãs em que parece entrar-te pelo nariz 
O cheiro de outros verões, antes da vontade da carne 
E da sede por vergonha tomarem conta da direção dos dedos, 
Aquelas manhãs antes do negrilho secar, antes da aflição dos gatos novos, 
Aquelas manhãs com cheiro a papel e pão fresco, 
Um leite que se tolerava bem, o que se engolia e o que se aguentava, 
Os pardais perderam o medo, na cara o Sol não planta sardas que sejam 
E o cabelo já não sabe o caminho para a iluminação, 
Só espero que o meu pai eterno, a minha mãe eterna 
E o vizinho do cavalo sempre uma alegria genuína e rara 
Quando regresso, não tarda arrefecem as pedras 
E todas aquelas manhãs quentes tão impossíveis 
Quanto os sonhos ridículos da infância. 

Torre de Dona Chama 

22.08.2018 

João Bosco da Silva 
Necromancer na Galiza 

Quando olho para os pêlos ruivos do meu braço 
Queimado pelo Sol, lembro-me se valerão a pena 
Tantas ruínas, tantas salas fechadas no pó 
Da memória, com a mobília a apodrecer 
Como os ossos dos velhos esquecidos, 
Com a força única da caneca ao copo 
E os suspiros contra todas as canículas 
Em que esperam tudo o que secou, 
Valerão a pena, bairros inteiros, peitos vazios 
Do ar fresco e verde de um abraço antigo 
Como os dentes de leite, 
Nada é ruína quando há memoria. 

Celanova 
(Galiza) 

20.08.2018 

João Bosco da Silva