quarta-feira, 10 de outubro de 2018

A Um Amigo 

Lembrei-me de ti Carlos, enquanto ouvia Yann Tiersen 
E me pareceu que respirava a chuva triste de Paris, 
Mesmo que nunca me tenha molhado dessa forma, 
O mais tímido de todos nós, tu, a mim só me faltava coragem, 
O mais calmo, lembro-me daquela vez em que doente, 
Vomitaste no corredor ao lado da sala do sétimo ano 
E a contínua foi cruel, ameaçou-te com o balde e a esfregona, 
Acho que a passei a odiar por ti, tu nem reclamaste, 
Ainda tão longe destas distâncias que a vida nos impõe, 
Para que digamos, é a vida, são coisas da vida, 
Sei que se te perguntar que tal estás, agora, me dirás, 
Bem e tu, e ficaremos por aí, meses, anos, a que nos resta, 
Nunca tropecei num acto de maldade teu, 
Mesmo nos anos em que a voz se torna mais bruta 
Ao ritmo do bater das cartas e dos chutes na bola, 
Fiquei contente mais tarde por saber que também tu meu amigo, 
Lembraste-te de mim quando a maioria diria, ele não se interessa, 
E aquele arroz de marisco da tua mãe, o abraço antes de mais um livro, 
Mas o livro onde também tu, como naquele poema 
Na aula de português armado em Caeiro dos montes, 
Tu conheces bem o meu tamanho, sem nunca termos falado de abismos, 
Espero que a vida te seja justa, como um copo de porto bem cheio. 

Turku 

10.10.2018 

João Bosco da Silva 
Quase É Nunca 

A família tinha ido fazer a peregrinação pela Galiza aos anos felizes, 
Tinha três dias sozinho em casa, abastecido com latas de salsichas 
Que aquecia directamente no fogão e atum, o resto era pão da terra, 
Ela andava a tirar a carta de condução, loirinha, ou o quanto se podia 
Ser naturalmente loiro e dos montes, a melhor aluna, 
Que como quase todos os melhores daquela terra, morreram na praia 
Dos exames nacionais, uma tarde, depois da lição de condução 
E antes do pai a ir buscar, veio ter comigo a casa, 
Estava eu refugiado da canícula, a soprar o pó aos cartuchos, 
A curar uma ressaca de meia dúzia de cervejas, mergulhado 
Num estado de sala de espera do dentista aos dez anos, 
Escrevia um rascunho mental para ir estudando pelo caminho, 
Beijo-a aqui e levo-a até ao quarto, ao colo, não é muito longe, 
O quarto escuro, a primeira virgem, sangrará muito,  
Sairá aquela matéria que deixei, que fazer aos lençóis, 
O preservativo à mão, não vá o diabo tecê-las e acabou-se a festa 
Antes do fogo-de-artifício, ela chega, bate à porta timidamente, 
Conversamos, sobre o quê só o soube no segundo de cada palavra, 
Um beijo como um salto da ponte, oscilando entre cobardia e coragem, 
Levei-a ao colo, cabeçada logo à entrada do corredor, 
Quarto escuro, roupa para o chão, espero que não se esqueça de nenhuma meia, 
Tudo com a vontade e a precisão de um tsunami, 
Língua, beijávamos com o potencial de um alambique, mamilos, 
Que de certo também rosados no escuro, mão nas cuecas suculentas, 
Aquele aconchego familiar nos dedos, cuecas pernas fora, 
Mergulho de cabeça, mas nada de rebuçado, andava metido com Nabokov 
Na altura, aquilo tudo tão primitivo, o cheiro como a beleza da neve, 
Quando depois de ser vista pela janela, gela os dedos até aos ossos na rua, 
Batia uma enquanto puxava o lustro roçando o nariz nos fios de cobre, 
Se tivesse barba fazia um estrago naquelas virilhas, quando estava no ponto 
Meti o preservativo enquanto esfregava naquela lesma quente e me vinha 
A todo o comprimento, no único preservativo, o pai dela também quase a vir, 
Então não a metes, e não a meti, não lha ia meter nos próximos cinco minutos, 
Nem nunca mais, acho que pensou que nem a levantei, 
Mas aquilo tudo, depois de atestar o vazio, pareceu-me uma mata-porca, 
Sem fome, algo só para cumprir o ritual, nunca mais voltamos a falar, 
Humilhada pela minha vergonha, fui sabendo das vezes em que perdeu a virgindade, 
Tantos prontos a espetar a faca, os invernos tão longos, 
Nunca estive tão perto de além de ser um arrependimento, 
Ser o primeiro pedaço de vergonha alheia em alguém, mas quase, é nunca. 

Turku 

07.10.2018 

João Bosco da Silva