domingo, 29 de dezembro de 2019

Cinzento 

Cada vez se torna mais difícil agarrar o passado, 
Desenrolar um novelo, agora tudo migalhas cada vez mais pequenas, 
Que se apanham pressionando a ponta do momento 
Sobre o tampo vazio da alma, e levar o momento 
À ponta dos olhos fechados ou fixos na parede, 
Fica-se uma eternidade a matutar na cor que falta, 
Na data que foi e não se encontra, no nome que tudo era, 
Fica-se como quem acabou de ler um livro e fica a olhar 
Um rio a passar, esperando uma ou outra folha, 
Se o passado existe é porque trazemos connosco 
Todos os instantes que passaram, porque o lembramos 
Como uma realidade, onde só cabe um tempo, 
Temos a memória virada para o passado 
E a imaginação virada para o futuro e entre ambas 
Moramos, um nome, uma idade, um saco de recordações 
E sonhos, medos e desejos, de carne e vazios, 
A promessa de um silêncio e eternidade, criadores de deuses 
E demónios, inventores de realidades e limites, 
Palavras em pedras, pedras em palavras, 
Cada vez se torna mais difícil ver passar o rio, 
Seguir uma folha até ao limite da vista, 
Olhar a parede vazia e ver, o tempo que nos foi possível. 

29.12.2019 

Turku 

João Bosco da Silva 
Natal Em Berna 

É Natal, do outro lado da rua os turistas tiram fotos 
Ao lado da casa onde Einstein morou uns anos, 
A madeira crepita na lareira centenária e Kerouac 
Remenda o saco-cama podre como uma cirrose, 
Deitado nesta poltrona numa cidade estranha, 
Sinto-me em casa, a família está junta, 
Contudo sinto que é um estranho quem segura 
O livro que releio, estas mãos, sempre tão cheias 
De distância e prontas para o vazio, 
Da janela a rua cinzenta espelha-me a alma 
E no lume ardem as memórias que já não me pertencem, 
Enquanto a noite se aproxima sou esquecido por tantos, 
Mais uma página para nada, seja ela em branco então, 
O Natal tornou-se num beliscar para ver se ainda se está acordado, 
Aos meus pés o gato é a capa de um livro que nunca escreverei, 
Uma companhia aos tantos que escrevi para o mesmo efeito, 
Como todos os Natais que se repetem  
Como o dizer o próprio nome em voz alta no escuro, 
É Natal e a chama de uma vela, sem gravidade, é redonda. 

Berna 

25.12.2019 

João Bosco da Silva 

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Tristessa 

A tristeza é um lugar de onde não se foge, habita os ossos, 
Dos poetas e dos bancos vazios do café da aldeia, 
É um mês que se odeia e dura mais que os anos, 
É uma sede ao acordar numa manhã gelada, 
É a roupa geada no estendal enquanto alguém acende o lume, 
Não se apaga com beijos, ignora-se apenas enquanto 
O Sol se põe na Acrópole em tons púrpura de eternidade, 
A tristeza é a cor perdida das estátuas clássicas, 
É o amor frio, que espera na cama o primeiro toque, 
É o primeiro olhar que nunca se repete,  
A cegueira que o nevoeiro dos dias injecta na alma, 
A tristeza é um poema enquanto a música acaba 
E fica só o silêncio e as palavras à espera de um leitor 
Que não diga, valente merda, mesmo que o seja, 
É o cheiro a cera e flores podres num cemitério minhoto, 
É a vontade de tudo em tempo de nada, mãos demasiado vazias 
Para a eternidade possível das palavras, 
É o nome de uma prostituta pela qual Kerouac se apaixonou, 
A tristeza é uma piscina pública no Inverno e o seu silêncio 
Frio de folhas castanhas sobre o azul impossível do Verão, 
A tristeza é a caneca vazia e o frigorífico cheio 
E a certeza que amanhã será mais um dia triste. 

Turku 

05.12.2019 

João Bosco da Silva