quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

A Outros Avós 

para o Marco, 

Não range mais aquele soalho, a vida é mais curta que umas tábuas, 
Descola-se mais rápido que um papel de parede, e nós que somos eternos, 
Porque jovens, já começamos a olhar para o número que temos na mão, 
Sabíamos que não eram eternos, mas será que sabíamos mesmo, 
Enquanto passávamos carradas de gel na cabeça para impressionar 
As filhas dos vizinhos, mesmo de Inverno a geada empalidecia, 
Despacha-te lá que o rapaz está à espera, na verdade tinha tempo, 
Sentado em frente ao aquecedor a gás, naquela bela sala, 
A discutir coisas que realmente não percebia, comentando quão mal ia o mundo, 
Segundo o que a televisão nos cuspia, fazia o papel de bom rapaz, 
Até o era na verdade, pelo menos aos seus olhos, apesar de também 
Montes de gel na cabeça e o cabelo demasiado comprido, 
Nunca mais voltarei a subir aquelas escadas de madeira, 
Sentar-me-ei, um dia que possa, nas de pedra, lá fora, 
Porque essas ao menos não nos dão a ilusão da eternidade, 
Tenho pena deles amigo, sinto que falhamos, devíamos ter continuado 
A usar muito gel no cabelo, deixar a barba por vir, não crescer, 
Devíamos ter-lhes dado mais tempo, quando éramos seus donos. 

Turku 

31.01.2019 

João Bosco da Silva

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Carta Perdida 

Lembras-te do tempo em que me encerrava na casa de banho 
A ler Bukowski trazido da biblioteca e a rabiscar poemas 
Sobre um amor que devia ter ficado a apodrecer no seu nojo, 
Enquanto tu dormias, os vizinhos fodiam, depois mijavam, 
Puxavam o autoclismo e enquanto ouvia a água a correr 
Pelos canos algures nas têmporas, acabava mais um poema de merda 
E tu orgulhavas-te de mim, se calhar por nunca me teres lido, 
Porque a língua uma distância palpável entre nós, 
Agora, dentro de ti cresce algo que nunca fui, 
Algo que nunca serei, não sei sequer se me arrependo, 
Mas na verdade, sempre brinquei com a tristeza,  
Como alguns brincam com o fogo no verão, 
Espero-te bem e desculpa-me os pequenos infernos 
Privados, encerrado em casas de banho na madrugada. 

Turku 

27.01.2019 

João Bosco da Silva

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Casaco Castanho do Meu Pai 

Há semanas que não encontro lugar onde me sentar, 
Espaço onde cuspir as ruminâncias que me ajudam a engolir 
O Inverno quando não há lareira nem despojos de infância, 
Tento trazer o sabor dos pinhões ao verso, 
Mas na pinha só vejo a chama que já não me aquece, 
Só queria num momento o cheiro do casaco castanho do meu pai, 
Quando tudo era eterno e o tempo era mais um dia, 
Tenho fome, mas fome só do queijo com marmelada 
Que não voltarei a comer, não sei como cheguei aqui, 
Durar tanto para se chegar onde se não está,  
Como posso sentar-me agora e encontrar-me, 
Se não trouxe comigo o canto das andorinhas. 

Turku 

25.01.2019 

João Bosco da Silva

domingo, 13 de janeiro de 2019

O Teu Sonho 

Voltei a não ganhar nada no loto, tu dizes que sonhaste comigo, 
Outra vez, parece que ambos ficamos longe de uma felicidade breve 
Ao lado da catástrofe, nunca nos encontramos na mesma noite, 
Nunca nos encontramos numa cidade real, algo familiar sempre, 
Como uma memória, como o desejo do teu corpo, tantos anos depois, 
Perguntando-me a que saberá agora, mesmo que nunca o tenha provado, 
Mas o mesmo encostado ao barco, o mesmo que encostaste à cama de hospital 
Vazia, no quarto quase vazio, onde apenas o eco de alguém que foi, 
Mas realmente já não está, não te toquei, tu sabias que não o faria, 
Sabes que depois de uns anos, é impossível regressar,  
Nada mais perigoso que reencontrar algo pela primeira vez, 
Uma cidade familiar, desconhecida, se calhar em Espanha, 
Uns minutos num hotel a tornar a eternidade em algo possível, outra vez, 
Sem esperar por outra vida, dizes que sonhaste comigo, 
Quem sou eu nos teus sonhos, deitei-te na cama desta vez? 

Turku 

13.01.2019 

João Bosco da Silva

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Incompleto 

É triste perder um amor, mas mais triste é perder a vontade de o foder, 
Olhar as luzes longínquas onde mora gente, se calhar desconhecidos 
Para sempre, ou com potêncial esmagador de certas aparições, 
E ter vontade de uma nova perdição, de uma tristeza aconchegante, 
Algo que quebre o silêncio da neve com uma dureza nocturna, 
Cada primeiro beijo é um Inverno por chegar,  
A textura quente da novidade gasta-se como um cheiro demasiado familiar, 
Resta apenas aquilo que realmente cansamos, nós mesmos, 
Numa moldura de um olhar novo, mas tão sempre iguais 
Ao medo de não nos reconhecer-mos nos primeiros espelhos, 
Tudo se torna numa repeticão onde se verte o futuro ora num vazio, 
Ora numa extensa esterilidade que rapidamente te pede que te varras todo, 
Como se o que antes se pedia nas entranhas, agora uma contaminação 
Repugnante numa pele mais pronta a um nome para esquecer. 

Turku 

11.01.2019 

João Bosco da Silva