terça-feira, 30 de novembro de 2021


Haikus Alpinos



Ramo de alfazema

no bolso do casaco —

dia de nevoeiro.

 

Neste dia de nevoeiro

qual é

a nossa distância?

 

Encontrar serenidade

no lago

do nosso descontentamento.

 

Belas são as montanhas

e a distância

que nos separa.

 

Apesar do nevoeiro

com clareza se vê

o fundo do lago.

 

Eternos brotam

da neblina

os picos alpinos.

 

O poema que tenta

captar as montanhas

surge insignificante.

 

A gata roça a cabeça

na minha perna –

existo.

 

Desertas as vinhas

das uvas

e da sede.

 

Últimas folhas de outono

na árvore

da memória.

 

Suiça, Novembro 2021

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

 

Chablis

 

E se um dia nos encontrássemos em Chablis, na maresia pura

De um copo de Chardonnay, poder-me-ias contar as tuas aventuras

À Anna Karenina do sul, nessa tua capital do nosso país,

Eu poderia falar-te da minha fixação anal e do aperto que me acompanha

Nos intermináveis outonos nórdicos, que faríamos nos dias cinzentos

Enquanto as vinhas esperam a luz que lhes amadurecerá os bagos,

Levaríamos baguetes ao quarto de hotel, garrafas em cestos de vime,

Representaríamos o papel que tantas vezes sonhámos na capital francesa,

Faríamos amor em direção ao desencanto, imitando as garrafas vazias

Que acumulamos num canto, ao lado do coração, confessaríamos

Um ao outro como durante décadas o fizemos, o que nos leva ao desencanto,

O que cedemos ao desejo, um dia, se calhar noutra vida, em Chablis.

 

15.11.2021

 

Turku

 

João Bosco da Silva

quinta-feira, 11 de novembro de 2021

 

Louça Suja

 

A escultura grotesca que é a louça suja amontoada

Lembra-me a vida, que me custa enfrentar ao acordar,

Adia-se a obrigação, cancela-se mais um encontro,

Menos um copo sujo, há vida naquele monte,

Uma construção que a ordem e o detergente farão desaparecer,

Contudo olhar para aquilo pesa nos olhos,

Pesa na consciência quando lhe viro as costas

E me debruço no acto inútil de escrever um poema

Sobre louça suja e vida, há sempre a possibilidade

De um copo cair ao chão, um prato se partir,

É o risco que se corre quando se acrescenta

Mais um verso, respira-se melhor na aridez metálica

De um lava-louça deserto, por isso terei que terminar

Este fazer para dentro, pegar no esfregão e viver.

 

Turku

 

11.11.2021

 

João Bosco da Silva