domingo, 24 de fevereiro de 2019

Vila Praia de Âncora Vice 

Depois da primeira borrifadela com o protector solar, 
Abro os olhos em mil novecentos e noventa e um 
Em Vila Praia de Âncora, quando aquilo do tamanho de Miami 
E queria ser Guarda-Fiscal como o meu pai e prender bandidos, 
Mas em vez de uma 4l branca, um Ferrari testarossa, 
A pistola podia ser a mesma Star, enfiada no cós das calças brancas, 
Caminhando pelo passeio onde passam peixeiras e malandros 
Com boomboxes às costas chupando pilhas como quem chupa sonhos 
Nos primeiros melhores verões, o sol enorme, do tamanho da bola azul 
Na praia a fazer publicidade a futuras viagens no tempo, 
Dizem ser impossível dado à linearidade, falta de curvaturas 
Ou outras razões que em mil vidas não compreenderia, 
Mas a mim parece-me fácil, nem é preciso o canivete suíço do MacGyver, 
Basta uma demão de protector solar num dia quente 
E mesmo que no Índico, um salto até à praia em Miami onde nunca estive, 
Com um cheiro a anos oitenta, com espaço suficiente nas mãos para crescer 
E levar todos os cheiros como um buraco de minhoca 
Por onde o hipocampo entra e os sonhos inocentes tomam novamente corpo. 

Ubud 

15.02.2019 

João Bosco da Silva
Gudang Garam 

Fumo este cigarro com a satisfação dos amores fracassados 
E tem um sabor doce como a catástrofe de um incêndio num dia de procissão, 
Sopro o fumo pesado como lamentos saudosos sem vontade de regresso, 
Longe estão os bancos de jardim geados onde penei 
Ou os bancos de trás onde não estive, os franceses num Natal agoniado, 
A falta de pé para o salto quando a vontade de mergulho asfixiava, 
Não voltarei a temer a canícula, aprendi a saborear infernos, 
Apanhei gosto à profundidade dos abismos e ao toque da escuridão anónima 
Entre o abraço do salitre e sonhos perdidos, 
Chupo o cigarro e crepita, as memórias consomem-se 
Nas cores de um funeral hindu e estou em paz com a solidão. 

Ubud 

16.02.2019 

João Bosco da Silva