terça-feira, 26 de março de 2024

 

Vinha a mim uma Vinha

 

Vinha a mim uma vinha, dragões centenários

Em equilíbrio xistoso, um chiste no seu sorriso

Libidinoso, o mesmo entre os lábios escondidos

Da galega, hajam razões para que a morte

Se torne num esquecimento, as janelas remendadas

Com fita cola castanha, todas as vergonhas

Do mundo naquela primeira vez,

Vinha a mim a vinha e nos seus olhos

O futuro do que lá ficou, desamparado

Num pedaço de papel, lágrimas de cera

Roubadas em cemitérios ainda vazios,

O que fica é tão pouco que se aproxima do nada

E assim a um passo do infinito.

 

26/02/2024

 

Turku

 

João Bosco da Silva

 

Eterno Retorno

 

Ruínas do meu povo, migalhas sob um céu de chumbo,

O verde que se apreça nas evidências do meu sol,

Os sonhos claudicantes antes do trabalho

Pago com a ingratidão dos dias, migalhas sobre uma mesa,

A toalha cinzenta de ausências, raros são os dias bonitos

E acordar é um desassombro polido no fumo das cavernas.

 

Turku

 

03/2023

 

João Bosco da Silva

segunda-feira, 18 de março de 2024

 

Primeira

 

À beira dos segredos correntes do velho rio,

Coaxavam a rãs, viscosas de luar e cio,

A ponte intemporal, vestígio de brumosas

Recordações de impérios abatidos pela inevitabilidade,

Tudo convergente no teu abrir quente

Da vontade à minha promessa vazia de serotonina,

Sempre me amargou um pouco a chegada

Da primavera, ter que acordar com a nova luz,

Por isso me debrucei sobre o teu metálico gosto,

Despertou em mim o erro da bula

Numa surpresa de espuma, puxada de dentro

De ti, sobre ti, até ao luar dos teus olhos,

A prova maior de estarmos vivos,

Ignorando a lua levada pelo rio,

O perfume dos amieiros arrefecidos pela noite,

O silencioso trabalho da semente das papoilas

Nos campos adjacentes e o pulsar irreflectido

Do nosso sangue quase adolescente

Nas têmporas acariciadas pelo orvalho do nosso esforço.

 

18/03/2024

 

Turku

 

João Bosco da Silva

segunda-feira, 11 de março de 2024

Último

 

Revelam-se os cadáveres no degelo

E no peito escorre um mel tornado fel,

Pelo tempo e a distância, a tal saudade,

O pior de envelhecer é esquecer

E perder a nitidez dos seus lábios

Naquele último beijo, cujo lugar também se perdeu,

Nada é mais certo que um último beijo.

 

07/03/2024

 

Turku

 

João Bosco da Silva

Na Nossa Natureza

 

Leio-te com a vontade do mendigo

À prisca cuspida no passeio,

O escarro tuberculoso na fruta fresca,

O tesão esforçado dum velho rico

Rasgando o amor ganancioso da adolescente,

A minha língua temente em preces

No olho do cu de uma mãe embriagada em cio,

Trocar a eternidade lenta e morna

Por um chafurdar breve na lama da transgressão,

Contudo sentir o merecimento do sol na pele,

Acreditar na redenção pelo esquecimento.

 

11/03/2024

 

Turku

 

João Bosco da Silva

Eterno Degelo

 

Que dizem do gelo as estrelas

E da profundidade maligna dos sonhos,

A lama repetente dos desejos,

A fome de loucura e luxúria,

Conta-me tempo, do canibalismo

Símio dos profetas, palitando dentes

À sombra de figueiras e catástrofes,

O ritmo é lento e o erro certeiro,

Gelam as mãos ainda,

Tudo aos poucos se revela

Como um maldito amor moribundo.

 

Turku

 

11/03/2024

 

João Bosco da Silva