Ensaio Sobre O Cansaço Ou Mais Um Poema Desnecessário
Às vezes é algo como cansaço, uma ausência viscosa que se sente dentro e só
A solidificação em palavras, só a regurgitação de um sentido, alivia a acidez do fascínio
Doloroso que é um segundo a menos a cada segundo que passa, por cima de tudo
E a época das cerejas já acabou e este ano não existiram cerejas, nem tardes em cima
De cerejeiras até o estômago doer, só a dor no estômago que se propaga como
Um magma, mas afinal só bebida a mais numa noite tão pouco noite, e sucos gástricos
Que são tão pouco, tão mais nossos que quaisquer palavras que nos possam sair dos dedos,
Porque são de todos e todos querem ser donos exclusivos, mas não há uma forma,
Nunca houve uma forma, só o fim é comum e a eternidade é demasiado grande para as mãos,
Sejam elas quais forem e até a hipocrisia dos padres se apaga na hora da morte, Ámen.
Um ponto final tem muitas vezes o tamanho do infinito até que Um cai e recomeça
A sinfonia monótona das sílabas, da tentativa de dar vida ao silêncio, dar uma razão aos olhos
Para se moverem, para moverem o interior e o levarem a lugares que sempre lá estiveram
À espera da sugestão dos outros, ou do tempo para correr no tempo, fecham-se os olhos
E vê-se o cansaço, mais que uma palavra, mais que gotas de metal quente, que pingam
Na carne que todos somos, sem almas além dos gritos enquanto se dorme e se sonha
Com aldeias pequenas e bruxas e antigas paixões que nunca chegaram a perder-se,
Simplesmente se deixaram passar, porque às vezes não se deve tentar preencher o vazio
De um desejo, porque vale mais que o tamanho insuflado da desilusão resignada de se ter cumprido.
O cansaço em forma de cristal, de fragilidade que não se suporta mais, só por ser
Demasiado fachada e no fim o que se quer é brutalidade, o sabor do sangue nos lábios,
Dois dedos dentro enquanto se dilata para mandar a moral às urtigas e a missa de Domingo
Para o inferno, porque o que interessa são as palavras nas mãos, não as mãos nas palavras
E nasce um sorriso triste, dos que reflectem o ridículo alheio abençoado pela cegueira
Dos espelhos mentirosos, tem que se acreditar no que se quer, tem que se morrer enganado
Para viver para sempre, tem que se tentar para no fim acabar debaixo de um cansaço
E de uma vitória com o mesmo peso da derrota, no fim só haverá cansaço e todas as palavras
Serão inúteis na eternidade, todas as palavras são pedaços impossíveis de infinito
E o infinito não é amigo da memória, nem dos muros dos caminhos em direcção
Aos soutos e até a bicicleta daquelas voltas foi comida pela ferrugem, apesar das cicatrizes
Persistirem numa dor esquecida, de tempos frescos, livres, antes da corrida começar a sério.
10.04.2011
Turku
João Bosco da Silva