O Meu Tio
Tagana
Compro o
mesmo par de meias de há quinze anos atrás, as mesmas cores, escrevo com
As mesmas
palavras, de há mais de vinte anos, tento fazer delas poesia, elas obrigam-me
A ser poeta,
mas no fundo, o que queria repetir era aquele retrato com um lápis
De
carpinteiro numa pedaço tosco de pepel arrancado a uma saca de farelos, onde
Desenhei o
meu tio da França, redondo e de braços abertos, que morava no baixo
De uma casa
velhíssima e vivia de ovos cozidos com sal, peixes do rio e aves pequenas,
Cervejas,
vinho da sua vinha, fermentado no mesmo baixo, num lagar pequeníssimo,
Queria tanto
escrevê-lo, ele português e o meu francês favorito, com a careca sempre
Transpirada
e o nariz de batata acima do sorriso e o que estranhei o seu ar sério no
Bilhete de
identidade e o nome, nome de um santo eu que julgava que o seu nome
O que lhe
chamávamos, num pedaço de papel arrancado a uma saca de farelos,
Ele sempre
com algum pedaço de lixo nos bolsos, da França, para nos pôr contentes,
Os sobrinhos
dos sobrinhos reais, uma grade de Sumol à espera de nós e do Verão
E fascinava-me
ele poder nadar, no rio da aldeia, profundíssimo, tão grande era,
Hoje não
sei, nem imagino, só ossos que o fascínio pelos postes de alta tensão
Lhe
anteciparam, dizem-me que, mas hoje sei que glioblastoma, e o desenho a arder,
Esquecido na
lareira de uma casa velha, ainda mais velha, sem ovos cozidos,
Repito então
as mesmas meias, as mesmas cores, porque no fundo só queria poder
Desenhar os
mortos como desenhava os vivos, de braços abertos, nariz de batata, ali,
E hoje se
fecho os olhos, não lhe vejo o suor a escorrer-lhe na testa, nem um sorriso,
Mas a cara
séria do bilhete de identidade, com um nome que ainda hoje estranho nele.
06.06.2012
Turku
João Bosco
da Silva