Pés Frios
Enquanto os pés arrefecem, tudo se torna mais claro, com o silêncio
A acompanhar convulsões inertes, eléctricas, químicas e dedos que tentam
Ser sinceros ao pó que se levanta nas memórias que aparentemente
Deixaram de valer a pena e são as que suportam todas as outras,
Que por serem recentes, parecem mais importantes, estando longe disso,
Onde as galáxias morrem e não onde universos foram criados.
No fim, tudo são uns pés que arrefeceram, desejos que se perderam,
Amores que passaram e se odiaram e passaram mais e se tornaram ridículos
E ficam a tornar-nos lúcidos de que o coração erra tanto e não vale a pena
Dar-lhe ouvidos, também ele arrefece, também ele perde o ritmo
E ignora sombras ridículas de que já não somos.
Só as fotografias que ainda nos querem, depois de tantos anos,
Tanta erosão, tanta desilusão, distância, que nos esperam depois de tanto silêncio,
Que nos aquecem quando os pés já arrefeceram há horas,
Só essas merecem o respeito dos sorrisos sinceros, dos olhares com desejo,
Com remorso ou com tristeza, só essas merecem os dedos que as tocam
E os lábios que as beijam sem pudor, sem medo, mesmo que ainda não haja silêncio
Num quarto vazio, pois ainda vibram as fibras de algo sem corpo que morre
Para ressuscitar algo melhor, mais real, mais sólido, que resistiu à sua morte possível.
As madrugadas ainda adormecem, as lareiras arrefecem, o vinho deixa de se sentir
E só uma dor de cabeça e uma náusea ficam da euforia da noite anterior
Que o dia seguinte apagará para sempre até haver uma próxima, mais uma,
Uma que dure toda a eternidade a que um mortal tem direito,
Até não haver forma de aquecer os pés que se deixaram arrefecer.
17.01.2011
Torre de Dona Chama
João Bosco da Silva