domingo, 26 de maio de 2019

Black Swan nº2 

Depois daquela noite, o que encostaste à almofada, 
O esparguete arrefecido antes das férias de Natal, 
Os meus óculos ridículos que presenciaram 
As punhetas desesperadas à hora de almoço, 
Por causa da saia à bibliotecária dos filmes alemães 
Da tua colega de apartamento, será que terminou 
A tatuagem na zona sagrada dilatada pelos filhos, 
Penso tantas vezes na viagem de regresso naquele táxi, 
Não faço ideia do que levei na cabeça, 
Só nos tomates, uma vontade de anos que não despejei, 
Em cima de uma mesa numa esplanada vazia 
Nas traseiras de um bar numa noite de Primavera chuvosa, 
A mais de mil quilómetros, de anos, de consanguinidade, 
Estranho que fodi mais mulheres quando nem um livro em comum, 
Amigas numa noite de tropeço, colegas na fome de um aconchego, 
Poucos dentes, tudo com o favor de uma nata facilitada 
Pela boca seca na manhã seguinte, ninguém esparguete 
Resgatado do ralo tão limpo como a minha almofada, 
Alma até, nunca mais gostei de franceses e não tem a ver com bola, 
Estranhei, mas acabei por perceber, mais fácil se deixa entrar no corpo 
Quem nunca na alma, tenho bebido o suficiente para confirmar. 

Turku 

26.05.2019 

João Bosco da Silva 
La Femme d´Argent 

Hoje escrevi o primeiro poema de Maio e o céu tem a cor daqueles dias tristes 
Dos quais tenho saudades, chovia também nesses dias e as gotas escorriam 
Pelos vidros da Mitsubishi ao ritmo de Mike Oldfield, encostava a cabeça 
E tudo me sabia a mercúrio frio e às pocilgas na Espanha fronteiriça, 
Contudo tinha as mãos vazias e jovens e havia satisfação naquilo tudo, 
Saber que ia morrer, cair num vazio absoluto e que o mundo passaria bem sem mim, 
Que rico me sentia com aquela aconchegante tristeza, 
Aquela verdade que ninguém parecia ver, na cor do céu, em cada sorriso 
A promessa de uma lágrima, muros de pedra ao vento numa aldeia deserta, 
Cujas mãos construtoras há muito uma fotografia apagada pelo sol no cemitério, 
E o poder de acabar isto tudo na sorte e na vontade que esmaga todas as outras, 
Acabar um universo com um murro num espelho de guarda-fatos carunchoso, 
Escrevi o primeiro poema de Maio, engolindo a tristeza sem razão, 
Não culpo o céu de chumbo, o peso do ar entre os goles de cerveja, 
Quente, não culpo a evidente verdade há muito coberta pelo cotão dos bolsos, 
Culpo esta camada fininha de gordura que me reveste a alma 
E me impede de lamber o sabor o cinzento como prata, 
Se algo me falta é a miséria, daí me sentir, talvez, miserável ao Sol de chumbo. 

Turku 

26.05.2019 

João Bosco da Silva 
Chuva de Maio 

Posso dizer-te que já morri há muitos anos,  
Fiquei algures entre os cogumelos secos à chuva de Maio 
E aqueles olhos que não me viram e nem me interessei, 
A vontade tornou-se numa fome que se tolera até à hora da merenda, 
Tenho desejado tal como fazem os mortos e os iluminados,  
Mas continuo a tropeçar como num quarto escuro e estranho, 
Tem chovido e o ar sabe àquela Primavera cinzenta 
Que começou num caminho lamacento dentro de quem 
Gerou filhos de um cornudo que nunca cheguei a conhecer, 
Tem chovido, mas entre uma chuva e outra, só o coração seca. 

Turku 

26.05.2019 

João Bosco da Silva