terça-feira, 16 de novembro de 2010



Savana Urbana


Anoitece e o cheiro dos cadáveres chama ao risco

Nas ruas quase abandonadas e as hienas farejam,

Os abutres circundam os passeios, os becos, antes que tudo se decomponha

E desapareça, a vida, a miséria essencial,

Para o dia amanhecer limpo e bonito,

Como se ali não tivesse havido antes vida, novo, falso, fachada.

Levantam as tampas dos caixotes, algo que ainda se coma, já é tarde,

Empurram papelões de caixotes de coisas com que nunca sonharam,

Cujo preço lhe dava para viverem até ao fim do ano sem fome,

Sem frio, com um sorriso de vez em quando,

Pobres necrófagos, transparentes à luz do dia.

Isso é meu, estranhamente dito, como se houvesse algo de alguém,

Mesmo assim há quem tenha a vida de outros.

Passa um Mercedes SLK 55 AMG negro e também transparente para eles,

Com as mãos lá fundo no lixo perto de um restaurante de uma cadeia multinacional.

Os ratos morreram na selva de pedras amontoadas,

Agora só gente e a sua peste negra por dentro, a matar aos poucos,

A escurecer o coração, escoar a esperança.

As unhas sujas escavam no passeio em busca de uma ponta de cigarro

Para a dor da cabeça do fim de um dia de fome,

Sorte ter havido alguém apressado para apanhar o autocarro para os seus trabalhos,

Quem lhe dera, quem me dera, a quem lhe dera.

Olhem para isto, estes gajos são mesmo burros,

Vamos antes que comece a chover, depois não serve e não se aquece,

Não interessa se ainda há leões por ali,

A entrar em bares e clubes nocturnos em busca de uma carne cheirosa,

Cinquenta mililitros a sessenta e três euros e noventa cêntimos,

Para abusar, fazer suar, gemer, cuspir, ejacular,

Fazer escorrer pelas pernas o cheiro a sexo bruto, clisteres,

Defecar em tetas perfeitas de seis mil e quinhentos euros,

Levar na cara a urina de uma desconhecida, uma puta ou uma vaca rica,

Outros como cães nos becos,

Menos selvagens, mal cheirosos, sujos, doentes por fora.

Passam e sorriem, as leoas vestidas com pele de bisonte,

Vacas de leite seco, cheias de engolirem leite de velhos de números grandes.

As estrelas não escolhem a quem se mostrar,

Deixam-se ver e pronto, para quem quiser e tiver tempo,

As hienas olham, quando a noite está quente e seca,

Deitados sobre os cadáveres do consumo, umas vezes de barriga cheia,

Outras vezes cheias de vazio e mesmo assim,

Conseguem espremer umas gotas às cascas de laranja

E dar alguma doçura à vida,

Mesmo que ela só brilhe dentro das casas fartas,

Mesmo que só quando passa um carro invisível, com gente cega lá dentro.



16.11.2010


Torre de Dona Chama


João Bosco da Silva