sexta-feira, 27 de novembro de 2020

 

Dançar à Beira de Abismos

 

Esta dança de palavras, luares e amanheceres adormecidos,

O rio no verão, o apetite que não chega às mãos,

A falta de vontade quando se abrem as pernas do mundo,

A sede nos copos cheios que aquecem, esta dança,

A escuridão ao acordar, o peito que incha, mas para um

Salto no vazio, o silêncio que semeia esquecimentos,

Para que não custe tanto a apneia, esta dança de palavras,

Estes sonhos gelados sacudindo a adolescência como caspa,

A vontade da derrota só para sentir a queda,

E que se foda o mundo, que se foda o mundo,

Que se foda quem ler esta dança de palavras,

Se não tiver mais nada que fazer, olhar abismos,

Na esperança de que quem dança, olhe de volta o espelho comum.

 

27.11.2020

 

Turku

 

João Bosco da Silva

 

Quase Poema

 

Só os vivos são capazes de poesia, de palavras vivas,

Encontram o calor do sol no gelo de dezembro,

O amor nas lágrimas de um lenço, mas quem raios usa lenços,

De papel são as promessas, como o mesmo gelo,

Que depois da hora do almoço já pinga em aborrecimento,

Só os vivos são capazes de poesia, por isso não sei como

Ainda consigo sacrificar mais uma memória

E fingir um poema, perguntam-me há quantos anos

Sou velho, digo que devo ter recebido uma alma em segunda mão,

Se ao menos conseguisse encontrar beleza no vazio

De um coração como no de uma bilha de gás.

 

27.11.2020

 

Turku

 

João Bosco da Silva

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Debaixo da Figueira 

 

No verão a sombra daquela figueira enchia-se de diferentes sotaques, 

De netos e filhos, havia vida atrás daquele muro, que os gatos ignoravam 

Como qualquer fronteira ridícula, às vezes quando não havia outras vozes, 

Ouvia-se falar com o cão ou com as galinhas, nos invernos havia um silêncio frio 

Debaixo da figueira nua, a humidade aos poucos depositava-se nos ossos, 

Fazendo pesar os anos e com o peso dos anos, cada vez menos vozes 

Debaixo da figueira, nas tardes de canícula, quando me julgava só, 

Debaixo do marmeleiro, matraquilhando contra mais uma ressaca, 

Ouvia o roçar dos ramos da figueira no muro, não era um gato, 

Não era o vento, então ouvia-a a ela, que me chamava e deixava 

Sobre o muro um saco com um tupperware, quando adivinhava 

Que eu por ali, logo apareciam uns dormidos, depois surgiam 

Umas análises que impotente lia e dizia o que já era sabido estar mal, 

Aqueles malditos diabetes e tinha razão, nunca lhe reconheci uma palavra 

Que me ofendesse, mesmo quando era garoto e ignorava, como os gatos, 

Fronteiras e muros, envelheceu debaixo daquela figueira, chamava-se Esperança. 

 

Turku 

 

16.11.2020 

 

João Bosco da Silva

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

 

Anosmia, Dióspiros e Vestido Branco

 

Sentado, quase vinte anos depois, debaixo daquele diospireiro,

Tu sais da sala fresca, daquele verão quente, vestido branco,

E vens sentar-te no meu colo, abraçando-me, era apenas isto,

Apenas isto tudo, nós inteiros como as nossas mãos,

Primeiro abraço-te e enterro a cara no teu cabelo, inspiro fundo,

Tento controlar a ereção que nasce, o pulsar que me insufla

Em direção às cuecas que me tocam a braguilha, porque tenho outra

Vez dezasseis anos e não sei como saltar da ponte,

Mas tu sentes-me crescer debaixo de ti e apertas o teu corpo

Com mais força, então lembro-me que estou farto de cabelos brancos,

Enterro mais a cabeça no teu cabelo, beijo o teu pescoço,

Levanto o vestido e procuro a pele das tuas nádegas,

Que aperto em direção à minha latejante vontade, inspiro fundo,

Não sinto qualquer aroma, puxo-te mais para mim, abres-te,

Então abro os olhos e tu não estás, continuo debaixo

Do mesmo diospireiro, a porta da sala está fechada e é inverno,

Numa vila deserta e cinzenta, já tinha percebido que tudo era um sonho,

Nunca senti qualquer cheiro nos sonhos, mesmo tendo o teu tatuado no hipocampo,

Fiquei ali sentado, no sonho, à espera, quase vinte anos,

Raramente penso em ti, contudo, sabendo-me a sonhar,

Ali fiquei à geada até acordar, eu que nunca gostei de dióspiros.

 

13.11.2020

 

Turku

 

João Bosco da Silva

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

 

Improbabilidade de Celia Cruz

 

Em África decidi que não te podia amar mais, enquanto emborcava Tuskers

E lia sobre uma guerra colonial tão estrangeira para mim, como o amor,

Seguindo por cima do livro os passos lentos da turista alemã,

Em direção ao chuveiro, atravessando um ar espesso como o cantar

Quente dos grilos, enquanto escrevinhava dentro daquele Toyota Hiace,

A contagem decrescente dos dólares e dos xelins, aquela pulseira

Acabou por se partir noutras violências consentidas, permanece espalhada

Numa gaveta do meu quarto de adolescente, à espera de um elástico,

Na companhia das cartas de amor que me escrevias, mi riño, la vida es un carnaval,

Aqueles montes, dizia-te, parecem uns para os lados de Fornos de Ledra,

Encontro sempre algo de familiar nos montes, mesmo que estejam pintados

Com outros verdes, o Sol é o mesmo e o amor esgota-se sempre,

E tinhas razão logo desde o início, no hay que llorar, que la vida es un carnaval,

Y las penas se van cantando, mas eu sempre fui fiel ao silêncio das palavras.

 

 

06.11.2020

 

Turku

 

João Bosco da Silva

 

Encornar pelo Seguro

 

Acordar, às vezes chega, com um remorso trazido em segunda mão de um sonho,

Uma ex-namorada, confrontando-te com um erro de cálculo, podia ter sido,

Mas não tinha sido, desaparecendo numa festa familiar, impossível,

Sem os muros de pedra debaixo de macieiras, onde ficou aquela fome de ruivas,

Os olhos verdes que hoje, só os mesmos quando fecho os meus,

Ou olho uma fotografia perdida, reconheces quem tenho aqui, disse,

No sonho, e ao lado uma mulher mais ou menos da idade dela, quando jovem,

Totalmente desconhecida, alguém que teria fodido com gosto,

Como tantas outras cujos rostos tento reconstruir como um puzzle forçado,

Não, nunca a vi, um rosto como tantos outros que passaram pela juventude,

Uns de joelhos, outros apenas alguém que passou no autocarro,

Aquele remorso reciclado, mas foste tu que me ensinaste a trair,

A foder como vingança, ou para assegurar a honra na vergonha,

O teu paradoxal sorriso inocente, nesses mesmos lábios, que me contavam,

Que tinhas fodido este e depois aquele, e o que mais me doía era a tua sinceridade,

A naturalidade com que me arrancavas as fibras da ilusão, que podia fazer se te amava,

A não ser foder estranhas em casas de banho públicas, só para equilibrar

O peso dos cornos nos teus e manchar os nossos lençóis com o esperma

Que escorria de corpos breves, quando tu não estavas e eu só temia os teus lábios.

 

06.11.2020

 

Turku

 

João Bosco da Silva