terça-feira, 30 de janeiro de 2024

 

Danos Colaterais


"You changed me, you should remember me."

Louise Glück

 

Vai e vem o inverno, há amigos presos nos dias que foram,

Do vinho só se espera o sono e o afrontamento precoce,

Enquanto o café sobe, mais um copo de água na oliveira

Que definha à janela, lá fora o mundo parece lento,

Mas tudo uma preguiça, um cansaço de veias secas ao alto,

Toca-se como o fogo, mas da fúria resta apenas a vergonha

E o arrependimento, o cheiro que se tenta esconder

Das manhãs evidentes, os danos colaterais murmuram

Como ecos numa casa assombrada, ninguém sabe bem

O que anda por aqui a fazer e cada um finge o melhor que pode,

O que fica dos sonhos é uma almofada babada.

 

30/01/2024

 

Turku

 

João Bosco da Silva

domingo, 28 de janeiro de 2024

 

CV 

 

Sou a antítese segura, o desejo secreto dos recorrentes, 

A espuma da raiva da manhã, a geada no canto da boca, 

O mistério da fé e do ridículo, o colo estéril da gula, 

O sonho dos mortos, o caudal esquecido da extinção,  

Contudo nas mãos vazias, mundos de ilusões, 

O cansaço emprestado dos avós, a pegada do copo vazio, 

Tu que julgas as graças dos anjos, condenas o inevitável sono, 

Que esperas das juntas pregas de visco e vício, 

Deixa-te cair em tentação, como num sono morno, 

Não esperes mais, o amanhecer será sempre mais uma volta. 

 

Turku 

 

28.01.2024 

 

João Bosco da Silva

quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

 


Caminhar

 

Caminhar numa ilusão de pálpebras,

Inertes os estremecimentos de cada passo

Batido no silêncio acolhedor do Inverno,

Tudo parece ter a distância do último dióspiro

Na árvore, a importância do arrependimento,

Os dentes escondem sorrisos tenebrosos

E sonhos que inquietam até a coagulação

Do sangue mais viscoso, os corvos esperam

O passar das eras, o esquecimento

De todas as civilizações, estar aqui,

Nunca permanentemente, permeável

A todas as tentações, punhos fechados

Nuns bolsos solitários, a caminho apenas,

Esperando o regresso como a certeza

De todas as primaveras, esmagar segundos

Como quem pisa cristais de neve

Num sufoco que ninguém lembrará,

Seremos apenas a ausência da água,

Uma sede que terminou, um olhar

Que se encontrará apenas nas palavras,

Até que a última seja esquecida.

 

13/01/2024

 

Turku

 

João Bosco da Silva

terça-feira, 16 de janeiro de 2024

 


Aquele Outro Porto

 

O Porto tornou-se numa recordação coberta de bruma,

Numa manhã cinzenta de Janeiro, ecos diluídos pelo tempo,

Aquele preservativo usado ao virar da esquina,

A colega que aos poucos se solidificou numa personagem

Tão real como a de qualquer filme daquela época,

Rua do Almada acima pela mão do namorado cabeludo,

Segurando uma garrafa de vinho, eu a fazer-me tão invisível

Quanto julgava ser, mais uma loja de ferragens ou segunda mão,

O drogado à entrada do Pingo Doce, à hora do almoço,

Eu de pizza no saco e moeda pronta no bolso para pagar portagem

E um obrigado doloroso, um quase amigo, aquela Ribeira

Tão imensa à beira de todas as decadências possíveis,

Tão sombria em olhos inocentes ao pó da história,

Aquele Porto do tamanho da maior cidade do mundo,

Não fosse o refúgio dos amigos da terra, que traziam os dias quentes

E as últimas gotas de felicidade, numa cidade, onde julgava

Ter encontrado o seu fim absoluto, teria asfixiado o verde restante,

Aquele Porto eco, neste Porto que por vezes revisito

Com certa alegria, eu tão estrangeiro como ele e quem nele

Agora vive emprestado, agora como uma velha amante que não se toca

Há anos porque a nossa idade domou o desejo ou o calcificou

Numa estátua inerte e tosca, de quem olhou para trás com saudades do pecado.

 

10/01/2024

 

Zurique-Helsínquia

 

João Bosco da Silva