sábado, 12 de novembro de 2022

 

Engolir em Seco

 

Quem serás amanhã, quando acordares, meio confuso,

Completamente desidratado, entre dois morros

E a promessa do infinito reflectida numa água que espelhou

A visita de demasiadas civilizações extintas,

Serás tu uma sede, o desejo que não se acende nos olhos alheios

Ao verem o reflexo prateado da verdade numas têmporas

Distantes da frescura de uma vontade outrora indomável,

Terás talvez o eco da doçura deste dia, tornado no vinagre

Daquela esponja oferecida a Cristo, amanhã o crepúsculo dourado

Será o ferro quente vertido na tua boca ressequida

De todas as sedes e pecados, as conas beiçudas que relembras

Enquanto a maresia te humedece as páginas na companhia

De um vinho tinto raro como ruim e o fumo de tabaco em segunda mão,

Expirado pelos pulmões das espanholas da mesa ao lado.

 

Xlendi

 

02.11.2022

 

João Bosco da Silva

 

Antes da Queda a Fractura

 

Chove no farol

o mar persiste

na eternidade.

 

Nos morangos silvestres

a maresia

da manhã.

 

De manhã

na palha húmida

o teu cheiro.

 

Julho a meio

floresce

a hortelã.

 

Pensará em mim

antes de adormecer –

cuco canta.

 

Adormecer embalado

pelo despertar

da cidade.

 

Na vida

como em tudo

sempre um amador.

 

Entre grilos e gaivotas

prefiro o silêncio

dos trevos.

 

Terra revolta

à beira do caminho –

batatas novas.

 

Secam algumas

flores de trevo –

o outono não demora.

 

Oito toalhas de banho

lavadas –

finalmente silencio.

 

Kaskinen-Turku, Julho 2022

 

Xlendi

 

Esquecer tudo e nadar em direcção ao pôr-do-sol,

Tocar a luz num último momento, agarrar o futuro

Na última despedida do crepúsculo, ser a água

E as rochas nervosas que a contêm, perder tudo

No fim de contas, num salto inesperado,

Bem-intencionado como o destino, Novembro também

Chegou aos patos, passarão o Natal em África,

Regressarão quando um crepúsculo volte a valer a pena.

 

Xlendi

 

02.11.2022

 

João Bosco da Silva

 

“by the sea”

 

Um destino incompleto que ficou no buraco de um dente de deus,

Um pedaço de lama do pó de estrelas sem sopro, um desperdício de vida,

A revolução consciente do universo, o reflexo sorridente num buraco negro,

Um grão de tudo que acabou num nada sem escolha, inconsciente

Ao menos, sem dor além daquela que a mãe suportou,

Além da minha cáustica presença, o ridículo espasmo animal,

Numa espiral nauseante infinitamente vazia, tudo o que poderá ser,

Será, fosse ao alcance destes olhos humanos a eternidade,

Apaga-se o mesmo sol de sempre, além do mar, levando esta carta

Ao filho que nunca.

Xlendi

 

02.11.2022

 

João Bosco da Silva

 

No Tempo em que se ia Cagar à Coelheira

 

Em casa da minha avó, cagava-se no baixo onde todos os coelhos

Com os olhos vermelhos por causa da escuridão,

Era igual, cozidos ou refogados, naqueles pratos de vidro

Com bolhinhas de um ar aprisionado doutros tempos,

Devem ter-se partido todos ao longo dos anos,

Aquele gosto a rato ou traves que apodrecem, aquela carne seca,

O molho escuro, coitado do coelhinho, tantos ossinhos,

Seguravam-se pelas patas traseiras e passava-se uma mão rápida

Pela nuca abaixo, um estremecer e muito bem meu filho,

Depois com as calças todas cagadas e a caminhada da vergonha

Da coelheira até casa, pela lama da rua fora, seu porco

Que cagaste no cansaço de uma mãe farta de gelar os dedos

No tanque, a lavar miniaturas de gente que não foi chamada

A este mundo por vontade, só desejo, cego, sardinhas assadas

E vinho verde, cagão, e o gosto pelo coelho a desaparecer,

Quando até gato bravo ia com gosto, a vergonha a temperar

Com nojo aquela carne, décadas mais tarde, em Malta

Uma tentativa de que se calhar, já passou, mas logo depois

Da primeira garfada, um garoto com o cu sujo ao léu,

Pelo lodo abaixo, a caminhar pela aldeia fora,

Em direção ao silêncio redentor de uma porta fechada.

 

Xlendi

 

02.11.2022

 

João Bosco da Silva