terça-feira, 16 de abril de 2024

 

Ouço um pica-pau

a neve escorre

enfim chegaste.

 

Como o que parte

Alva chega

com a primavera.

 

06/04/2024

 

Turku

 

João Bosco da Silva

terça-feira, 26 de março de 2024

 

Vinha a mim uma Vinha

 

Vinha a mim uma vinha, dragões centenários

Em equilíbrio xistoso, um chiste no seu sorriso

Libidinoso, o mesmo entre os lábios escondidos

Da galega, hajam razões para que a morte

Se torne num esquecimento, as janelas remendadas

Com fita cola castanha, todas as vergonhas

Do mundo naquela primeira vez,

Vinha a mim a vinha e nos seus olhos

O futuro do que lá ficou, desamparado

Num pedaço de papel, lágrimas de cera

Roubadas em cemitérios ainda vazios,

O que fica é tão pouco que se aproxima do nada

E assim a um passo do infinito.

 

26/02/2024

 

Turku

 

João Bosco da Silva

 

Eterno Retorno

 

Ruínas do meu povo, migalhas sob um céu de chumbo,

O verde que se apreça nas evidências do meu sol,

Os sonhos claudicantes antes do trabalho

Pago com a ingratidão dos dias, migalhas sobre uma mesa,

A toalha cinzenta de ausências, raros são os dias bonitos

E acordar é um desassombro polido no fumo das cavernas.

 

Turku

 

03/2023

 

João Bosco da Silva

segunda-feira, 18 de março de 2024

 

Primeira

 

À beira dos segredos correntes do velho rio,

Coaxavam a rãs, viscosas de luar e cio,

A ponte intemporal, vestígio de brumosas

Recordações de impérios abatidos pela inevitabilidade,

Tudo convergente no teu abrir quente

Da vontade à minha promessa vazia de serotonina,

Sempre me amargou um pouco a chegada

Da primavera, ter que acordar com a nova luz,

Por isso me debrucei sobre o teu metálico gosto,

Despertou em mim o erro da bula

Numa surpresa de espuma, puxada de dentro

De ti, sobre ti, até ao luar dos teus olhos,

A prova maior de estarmos vivos,

Ignorando a lua levada pelo rio,

O perfume dos amieiros arrefecidos pela noite,

O silencioso trabalho da semente das papoilas

Nos campos adjacentes e o pulsar irreflectido

Do nosso sangue quase adolescente

Nas têmporas acariciadas pelo orvalho do nosso esforço.

 

18/03/2024

 

Turku

 

João Bosco da Silva

segunda-feira, 11 de março de 2024

Último

 

Revelam-se os cadáveres no degelo

E no peito escorre um mel tornado fel,

Pelo tempo e a distância, a tal saudade,

O pior de envelhecer é esquecer

E perder a nitidez dos seus lábios

Naquele último beijo, cujo lugar também se perdeu,

Nada é mais certo que um último beijo.

 

07/03/2024

 

Turku

 

João Bosco da Silva

Na Nossa Natureza

 

Leio-te com a vontade do mendigo

À prisca cuspida no passeio,

O escarro tuberculoso na fruta fresca,

O tesão esforçado dum velho rico

Rasgando o amor ganancioso da adolescente,

A minha língua temente em preces

No olho do cu de uma mãe embriagada em cio,

Trocar a eternidade lenta e morna

Por um chafurdar breve na lama da transgressão,

Contudo sentir o merecimento do sol na pele,

Acreditar na redenção pelo esquecimento.

 

11/03/2024

 

Turku

 

João Bosco da Silva

Eterno Degelo

 

Que dizem do gelo as estrelas

E da profundidade maligna dos sonhos,

A lama repetente dos desejos,

A fome de loucura e luxúria,

Conta-me tempo, do canibalismo

Símio dos profetas, palitando dentes

À sombra de figueiras e catástrofes,

O ritmo é lento e o erro certeiro,

Gelam as mãos ainda,

Tudo aos poucos se revela

Como um maldito amor moribundo.

 

Turku

 

11/03/2024

 

João Bosco da Silva


quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

 

A Espuma da Manhã  

 

Quero o sol, a glória da manhã,  a tua face reluzente 

De juventude e cio, o estio dos dias, o teu dourado restolho, 

A Lisboa estrangeira dos sonhos onde me perco sem vontade, 

Um dia seremos outra vez e depois tocará o despertador. 

 

Turku 

 

07/02/2024 

 

João Bosco da Silva 

domingo, 4 de fevereiro de 2024

 

Um Luar para que não Esqueças

 

Longe, um quarto vazio que não espera, visita os sonhos

Após dias vazios e longínquos, para que se trazem

Os mortos nos bolsos, não os outros, mas os que fomos

Morrendo, há alegrias simples, a acidez fresca

De um prato familiar, as geadas de granito,

O cinzento mar das montanhas do interior,

Tudo um sufoco de urze por florir, será que um dia

Teremos realmente o mesmo céu, como o mesmo medo,

Querem-se os joelhos mordidos pela palha dos palheiros

E as micas das fragas, querem-se os dentes afiados

Pelos tropeços nos intervalos, todos os segredos restantes

Uma gaita de foles vazia, hajam relâmpagos no fim do verão,

Um regresso para apalpar as uvas e as recordações,

Um luar de primavera para que não me esqueças.

 

Turku

 

03/02/2024

 

João Bosco da Silva

terça-feira, 30 de janeiro de 2024

 

Danos Colaterais


"You changed me, you should remember me."

Louise Glück

 

Vai e vem o inverno, há amigos presos nos dias que foram,

Do vinho só se espera o sono e o afrontamento precoce,

Enquanto o café sobe, mais um copo de água na oliveira

Que definha à janela, lá fora o mundo parece lento,

Mas tudo uma preguiça, um cansaço de veias secas ao alto,

Toca-se como o fogo, mas da fúria resta apenas a vergonha

E o arrependimento, o cheiro que se tenta esconder

Das manhãs evidentes, os danos colaterais murmuram

Como ecos numa casa assombrada, ninguém sabe bem

O que anda por aqui a fazer e cada um finge o melhor que pode,

O que fica dos sonhos é uma almofada babada.

 

30/01/2024

 

Turku

 

João Bosco da Silva

domingo, 28 de janeiro de 2024

 

CV 

 

Sou a antítese segura, o desejo secreto dos recorrentes, 

A espuma da raiva da manhã, a geada no canto da boca, 

O mistério da fé e do ridículo, o colo estéril da gula, 

O sonho dos mortos, o caudal esquecido da extinção,  

Contudo nas mãos vazias, mundos de ilusões, 

O cansaço emprestado dos avós, a pegada do copo vazio, 

Tu que julgas as graças dos anjos, condenas o inevitável sono, 

Que esperas das juntas pregas de visco e vício, 

Deixa-te cair em tentação, como num sono morno, 

Não esperes mais, o amanhecer será sempre mais uma volta. 

 

Turku 

 

28.01.2024 

 

João Bosco da Silva

quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

 


Caminhar

 

Caminhar numa ilusão de pálpebras,

Inertes os estremecimentos de cada passo

Batido no silêncio acolhedor do Inverno,

Tudo parece ter a distância do último dióspiro

Na árvore, a importância do arrependimento,

Os dentes escondem sorrisos tenebrosos

E sonhos que inquietam até a coagulação

Do sangue mais viscoso, os corvos esperam

O passar das eras, o esquecimento

De todas as civilizações, estar aqui,

Nunca permanentemente, permeável

A todas as tentações, punhos fechados

Nuns bolsos solitários, a caminho apenas,

Esperando o regresso como a certeza

De todas as primaveras, esmagar segundos

Como quem pisa cristais de neve

Num sufoco que ninguém lembrará,

Seremos apenas a ausência da água,

Uma sede que terminou, um olhar

Que se encontrará apenas nas palavras,

Até que a última seja esquecida.

 

13/01/2024

 

Turku

 

João Bosco da Silva

terça-feira, 16 de janeiro de 2024

 


Aquele Outro Porto

 

O Porto tornou-se numa recordação coberta de bruma,

Numa manhã cinzenta de Janeiro, ecos diluídos pelo tempo,

Aquele preservativo usado ao virar da esquina,

A colega que aos poucos se solidificou numa personagem

Tão real como a de qualquer filme daquela época,

Rua do Almada acima pela mão do namorado cabeludo,

Segurando uma garrafa de vinho, eu a fazer-me tão invisível

Quanto julgava ser, mais uma loja de ferragens ou segunda mão,

O drogado à entrada do Pingo Doce, à hora do almoço,

Eu de pizza no saco e moeda pronta no bolso para pagar portagem

E um obrigado doloroso, um quase amigo, aquela Ribeira

Tão imensa à beira de todas as decadências possíveis,

Tão sombria em olhos inocentes ao pó da história,

Aquele Porto do tamanho da maior cidade do mundo,

Não fosse o refúgio dos amigos da terra, que traziam os dias quentes

E as últimas gotas de felicidade, numa cidade, onde julgava

Ter encontrado o seu fim absoluto, teria asfixiado o verde restante,

Aquele Porto eco, neste Porto que por vezes revisito

Com certa alegria, eu tão estrangeiro como ele e quem nele

Agora vive emprestado, agora como uma velha amante que não se toca

Há anos porque a nossa idade domou o desejo ou o calcificou

Numa estátua inerte e tosca, de quem olhou para trás com saudades do pecado.

 

10/01/2024

 

Zurique-Helsínquia

 

João Bosco da Silva