sábado, 14 de março de 2015

Barco Abandonado Em Savonlinna

Segue pela linha de comboio em direção ao limite, paralelo ao lago,
Eu estarei entre umas árvores à tua espera, assim começou,
E lá estava ele, numa madrugada nórdica sem estrelas,
Uma madrugada longa e cheia de promessas douradas,
O Sol não tarda, abençoado, ninguém espera reis em dias cinzentos,
Temos cerveja, vamos aquecer a sauna, perfeito meu,
Temos câmaras, vamos gravar, ninguém me disse que ia
Passar no museu Kiasma em Helsínquia, tudo bem, bebo,
Sou o que sou, num barco encalhado e abandonado
E ferrugento, tudo é permitido, duas estudantes de arte,
Perfeito, uma fica cá fora comigo enquanto um tipo desmaia
Ao sair da sauna, elevo-lhe as pernas, fica tudo bem,
Salto para o lago com a tocadora de kantele, depois
De a beijar após a mesma conversa de cabelos brancos,
Toco-lhe os lábios frios, porra, o lago não perdoa, a púbis
Ruiva dela a prometer um encontro de preto e branco
Num sofá qualquer, tudo bem, o barco perfeito, a ferrugem
Toda no lugar, a cerveja no ponto, ela tão fascinada
Que eu até me julgava de verdade, ela no videoclip
De uma música, num cemitério, anos mais tarde,
Epá, estive dentro daquele som, numa confissão depois
De jantar numas férias da resignação no lar, antes escrevias com
O cheiro delas nos dedos, agora parece que nem consegues fazer
Vibrar as cordas vocais, que aconteceu, algum vírus te
Intimidou a garganta depois de lamberes tanta cona,
Lembra-te do barco, da gente nua a bater com folhas uns nos outros,
Da viola a tocar e a invejar a tua timidez de tudo menos de dedo na cona,
Será que te afogaste antes da ford transit te vir salvar do paraíso.

14.03.2015

Turku


João Bosco da Silva
Da Inocência

O pôr-do-sol parecia algo tão natural como a bola da nivea ou aquela
Imagem nos pacotes de batatas fritas, aquilo era amor então,
Um banco de jardim e duas pessoas, mais tarde, milhões de vidas
Depois, vi uma chupar outra num banco de jardim por um pedaço
De algo, num saco pequeno, não havia Sol, era de madrugada,
O mar estava perto, as minhas mãos estavam secas,
Alguém me chupou depois de me ter pago uma pizza,
Ao menos eu tinha a bola da nivea na memória e aquele
Pôr-do-sol no pacote de batatas fritas dos anos oitenta,
Se ela me tivesse visto com aquele fato branco e sapatos brancos
Enquanto se festejava o aniversário da menina dos vizinhos de cima,
Até os sapatos brancos, sem cordões, faltava-me o testarossa
Numa escala que coubesse nas minhas mãos,
Já nem sei se pacote de batatas fritas, ou uma caixa qualquer,
Daquelas coisas estranhas que os adultos usavam para nos evitarem,
Seria mais isso, a bola dizem que a tiraram, alguém pagou mais ou menos,
A areia cada vez menos, o café ainda vende pastéis de nata,
A filha da peixeira não se lembra sequer do meu fascínio pelas
Cerejas nas orelhas dela, o meu melhor amigo, hoje, alguém importante
E este poema algo que nem tem pegas por onde se acabe.

14.03.2015

Turku


João Bosco da Silva
De Um Poema Sobre Lentes De Contacto No Metro De Londres

Porra, pensava que vinha de um país decente, apesar das ruas vesgas
E do lixo esquecido nos fins de semana, tinha um certo orgulho na cor dos olhos
E na genética estrangulada por montanhas, parecia-me ser tão natural ser puta
Como engolir hóstias e confissões de Domingo, nem estranhava que
Os trabalhadores que andavam a restaurar a casa dos meus pais
Falassem mais depois do almoço, imaginava como seria possível
Burros e carros de vacas com meio metro de neve mas ruas sem paralelos,
Mentir parecia-me ser uma qualidade dos políticos, os mais aldrabões,
Os melhores, porra, pensava que se podia ficar doente e que se era
Gente independentemente da carteira, até pensava que era normal
Nascer-se em hospitais da periferia e ser-se da terra, afinal um gajo
Tem que nascer na estrada, devem ser coisas do rei da beat,
Não sei, a pobreza parecia-me ser uma coisa normal e essencial,
Uma questão de referência, mesmo que andasse com roupa
Em segunda ou terceira mão, ainda havia gente que pedia nas ruas,
Achava que era rico, a minha mãe é que não encontrava os brinquedos que
Eu pedia, mas encontrava sempre algo parecido que durava pouco
Mas eu restaurava com cabeças de papel e membros de cortiça,
Achava normal não se consumir como era esperado, porra,
Como eu estava certo na altura, com aquela miopia infantil,
Agora de longe vejo melhor, porra de lentes de contacto,
Que me destruíram o paraíso, mas voltarei sim, claro que voltarei,
Quem quer ser enterrado onde o Sol não chega aos ossos.

14.03.2015

Turku


João Bosco da Silva