segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

A Fogueira Que A Distância Apaga

“pensar em ti é ter seguro
outro universo inteiro onde não estou”
António Franco Alexandre

Ainda me fascina a proximidade das distâncias, o rei morto que ainda impele os gritos
Contra as portas geadas, acendendo fogueiras de tradição que apesar do atropelo dos anos
E do esquecimento definitivo dos velhos, continua, sobrevivente a extinções maiores,
A incendiar corações maltratados pela saudade, os nossos olhos foram treinados
Para distâncias, contar monte atrás de monte, galgar encosta atrás de encosta,
Nunca esquecer, levar toda a gente, a terra inteira para onde quer que se vá,
Sempre com a máscara que é mais nós do que a sorte que nos deram, foi a que escolhemos,
Além naquelas montanhas onde o Sol se põe, vejo ainda aquelas onde treinei o olhar,
Onde o Sol se porá mais tarde e a minha mãe dirá da varanda, com o ar carregado
Com o fumo das lareiras, olhando o céu vermelho, meu filho, como gostarias de ver este céu,
Imaginando-me mais longe, ignorando que ela também aqui, do meu lado,
Vendo o dia a ser consumido pela fogueira que a distância apaga.

Zurique

27.12.2015

João Bosco da Silva
Regurgitações 3

“E no entanto és gente, sangue e terra
corpo vulgar crescendo para a morte”
António Franco Alexandre

A vida tornou-se nesta longa despedida, ao Sol, com uma sede na pele como
Se fosse o último, no ar os ecos das chegadas, os sonhos fossilizados na seiva
Do passado que escorreu das nossas feridas, a noite sempre a mais familiar das estações,
Na companhia dos cães que ladram contra a solidão e nunca se viram,
A Lua despreza o nosso olhar nostálgico e encara-nos indiferente com a sua luz fria de pedra,
O verde brilha mais que a vontade de mais um dia, as crianças completos desconhecidos
Que se perderão como velhos amigos, sentem-se os apertos de mão mas não se
Reconhecem os olhares, tudo escorre ao ritmo viscoso de uma despedida,
Que se engole e se sente até desaparecer algures no peito, como uma chama
Que se extingue de cansaço, deixa-te ficar ao Sol na única forma possível à ilusão,
Uma nota esquecida, entre um olá e um adeus.

26.12.2015

Torre de Dona Chama


João Bosco da Silva
Fragamentações - Haikus Trasmontanos

Atrás do Gary Snyder
Em direcção ao monte
De São Brás.

Cheira à geada
Antes do
Verbo.

Encontras um amigo
No acaso e amanhece
No crepúsculo.

Será que não percebem
Que o dinheiro não comprará
Uma nova Terra?

As raposas, selvagens,
Gostam de cagar
No alto.

A motosserra subjuga
O cantar dos
Pássaros

A gasolina um dia
Acaba e as aves
Serão ouvidas.

Nesta fraga escrevi
Um poema, hoje
Num livro na capital.

Gary Snyder, hoje
O nosso Jack
Está comigo.

Tudo arde, contudo
O verde regressa
Além do fim.

As hastes dos óculos
Atrás da orelhas,
Os carros que passam.

Obrigado pelo silêncio
Da solidão
Possível.

Rodeado de Montes
A eternidade parece
Segura.

Ouço as folhas cair
E lembro-me da
Infância.

Ao Sol o orvalho
Das couves, breves
Diamantes.

Tantas vezes me
Quis perder
No regresso.

As telhas que cobriam
Hoje esmagadas
Sob os pés.

Anoitece e cai nos
Olhos de uma mãe
A saudade.


Dezembro 2015, Torre de Dona Chama