segunda-feira, 31 de maio de 2021

 

Na Varanda Com Eeva Kilpi

 

Bebo avidamente o sol do fim de Maio,

Até me esqueço do café, que arrefece, quem diria,

Que aos poucos o verão chegaria,

Este sol na varanda é como respirar fundo,

De costas na corrente morna do tempo,

Vertendo palavras nuns papelitos,

Como novas folhas na força das árvores,

Bebo o último golo de café já frio,

Dizem os finlandeses que embeleza,

Nesta altura, já não tenho muito a perder.

 

Turku

 

31.05.2021

 

João Bosco da Silva

domingo, 30 de maio de 2021

 

Casa de Madeira

 

A casa é de madeira, mais fiel à duração

Do amor e da vida, a igreja já mudou de ilusões,

Pintou paredes, esqueceu mártires,

Melhor ficar bichosa e apodrecer aos poucos,

Como quem vive, um pouco mais talvez,

Caruncho, ilusão, amor, o fim sincero.

 

Naantali

 

29.05.2021

 

João Bosco da Silva

 

Crepúsculo no Báltico

 

O mar calmamente aceita o lento mergulho do Sol,

A mim já tanto me faz o que o amor moribundo promete,

O mundo também arrefece e ainda é primavera,

Amanhã acordarei com dor e o mar continuará,

Como se inúmeras vidas, não tivessem acabado.

 

Naantali

 

29.05.2021

 

João Bosco da Silva

sexta-feira, 28 de maio de 2021

 

Última Primavera

 

Sob os seus pés o mesmo granito da sua infância,

Tudo parece seguro e eterno naquelas fragas,

Contudo, em frente, o monte calcinado,

O cemitério onde habitarão todos os esquecimentos,

Onde novas papoilas todas as primaveras,

Darão a ilusão que tudo se renova, mas nada é o mesmo.

 

28.05.2021

 

Turku

 

João Bosco da Silva

segunda-feira, 24 de maio de 2021

 

Em Vez Disso

 

Em vez disso, abro mais uma garrafa de vinho,

Espreito pela janela o pôr-do-sol que se dissolve

Lentamente, como esperamos que a vida corra,

Engulo a vida, ou o vinho, é o mesmo, tudo passa,

Ao lado dos gritos, dos gemidos, torna-se no que somos,

O rumor mudo que levamos resignadamente às manhãs frias,

O silêncio convertido na confusão que nos acompanha,

Em vez disso, porque realmente não interessa,

Não há olhos que não vejam sempre um reflexo,

E sem reflexo, todos os olhos cegos, por isso,

Em vez disso, abro mais uma garrafa de vinho.

 

24.05.2021

 

Turku

 

João Bosco da Silva

domingo, 23 de maio de 2021

 

Hospitalidade Grega

 

Christina,

 

Depois de mergulhar na carne daqueles olhos

Da cor do Egeu na memória e nos sonhos,

Acolhia-me sempre a amargura com uma sede apertada

E doce, apesar da oferta quente e adstringente,

Não sei porque nunca te abracei, o teu apelido

Já desapareceu, tenho dúvidas ao escrever o teu nome

No silêncio, sempre fui bem recebido nesses lábios gregos.

 

Turku

 

23.05.2021

 

João Bosco da Silva

sexta-feira, 21 de maio de 2021

 


Hora de Jantar em Vallis gratiae

 

Na mesa ao lado, a minha juventude fracassada,

Os barcos regressarão e o dia continuará cinzento,

Os lábios apertam a palha como num sonho de verão,

O spritz desce-lhe pelas tripas abaixo, espero o bife tártaro,

A minha juventude fracassada naqueles olhos azuis

Que só veem um cansaço de outras décadas,

Anoitece tão lentamente que mal damos pelo crepúsculo,

A prata do Báltico torna-se mercúrio, a tarde perde também

A juventude, entretanto, vai pagar e levanta voo o cisne.

 

Naantali

 

21.05.2021

 

João Bosco da Silva


terça-feira, 18 de maio de 2021

 

Pêssegos na Varanda

 

k.

 

Ela tem vinte e poucos anos, o seu cheiro

Toca-me como uma camisa de rayon

Dançando numa brisa quente, lambidelas mornas

No que resta do sonho, ela envia-me uma música

Como um incêndio entre as pernas,

Enquanto na varanda, como pêssegos maduros

E a primavera corre para o verão.

 

Turku

 

18.05.2021

 

João Bosco da Silva

quarta-feira, 12 de maio de 2021


 

Cagar no Monte

 

Já o primeiro café se aconchega nas tripas,

As flores das giestas querem fazer frente

Ao sol do meio-dia, o relógio da igreja diz

Que ainda falta uma hora e já a pele emprestou

O cheiro do rosmaninho e alecrim, no poço

As rãs cantam pelas futuras gerações,

Ignorando invernos e infernos, então,

Debaixo dos carrascos, sinto a urgência nos intestinos,

Baixo as calças e cago ali, entre aquelas fragas de granito,

Os cães ladram, o campanário da igreja,

Agora silencioso, prepara-se para o meio-dia.

 

Turku

 

12.05.2021

 

João Bosco da Silva

 

Amanhecer e Três Pedras de Gelo

 

Amanhece, tudo é ridículo como cada gesto de amor,

No horizonte uma cor demasiado familiar, um medo

Antigo que se apaga numa ilusão rosada e laranja,

No copo o gelo derrete, a memória acompanha o ritmo

Lento do pó que tudo cobre, há uns anos teria dado tudo

Por ter a língua enterrada nas vergonhas alheias,

Amanhece, tudo me parece seguro quando aperto

Apenas o vazio nas mãos cansadas de tanta partida,

Um homem só se cumpre quando espera a morte

Como o abraço de um irmão, o resto é cio e demasiados

Cães a um osso, amanhecer é tão fácil, como durar,

Tudo é tão certo, tudo é tão frágil, entretanto o gelo

Nem se apercebe, que todo ele, é agora, água,

A noite agora uma manhã segura, limpa e vazia.

 

12.05.2021

 

Turku

 

João Bosco da Silva

terça-feira, 11 de maio de 2021

 

Alcatrão ao Sol

 

Em tantas palavras a evidente inutilidade de tudo,

O vazio da vontade, o sol que engana mais um dia,

Menos um dia, tudo passa, menos a ilusão da nossa permanência,

Tens razão, os nossos corpos já há muito que não se conhecem,

Foram tardes, noites, manhãs e despedidas,

Há fotografias mais reais que estas recordações

Que a distância dos dias torna anémicas,

Fosse eu outro e talvez te lembrasses de mim.

 

Turku

 

11.05.2021

 

João Bosco da Silva

quarta-feira, 5 de maio de 2021

 


Microcosmos – Haikus

 

“Faz o melhor que puderes e deixa para os deuses o que ficar por fazer.”

Yasunari Kawabata

1.

Numa folha de hortelã

a sede

da tua língua.

 

2.

Rosmaninho

inspiro fundo

a infância que resta.

 

3.

Ladram os cães

da vizinhança –

casas vazias.

 

4.

Não tem pressa

o Sol –

cantam os grilos.

 

5.

A sombra da rã

que salta

sobre o peixe vermelho.

 

6.

Arrefece o ar

coaxam as rãs

ao longe as rolas.

 

7.

Antes de ver

a minha sombra

esconde-se a lagartixa.

 

8.

Meu sangue

no toro de cerejeira

que racharei.

 

9.

“Caga no passado”

e limpa o cu

ao futuro.

 

10.

Aproxima-se uma tempestade

não interessa

está sol.

 

11.

Canta o cuco

lavram-se as terras

estou vivo.

 

12.

No campo lavrado

papoila solitária –

o teu sorriso.

 

13.

Pintam a primavera

os pássaros

a panela assobia.

 

14.

Que amanhecer

canta o galo

à hora do almoço?

 

15.

Na voz do irmão

ecoa

o amigo carpinteiro.

 

16.

No campo de rosmaninho

como o amor

secam os preservativos.

 

17.

Nos meus sonhos

tão vivo

quanto o sol depois da chuva.

 

18.

Dura mais um pente

que a juventude –

cabelos brancos.

 

19.

Brilha na couve

a gota de orvalho –

deixo a urina correr.

 

20.

Coaxam as rãs

ao sol –

amadurecem os figos.

 

21.

Pendura o hammock

meu pai –

figos verdes.

 

22.

No balde

ao lado do poço

a mesma água.

 

23.

As flores das favas

o canto do grilo –

anoitece.

 

24.

Sentado no banco

da feira

florescem as giestas.

 

25.

Regressa um rebanho

silenciam-se as rãs –

anoitece.

 

26.

Terra vermelha

a minha pele

ao sol no olival.

 

27.

Timidamente a rã

finge ignorar

a minha presença.

 

28.

Todas as promessas

de amor

o canto do grilo.

 

29.

Esvoaça um morcego

a rã salta

o grilo continua.

 

30.

Escovo a barba

sob o atento

olhar das rãs.

 

31.

Canta o cuco

toca o sino –

silêncio.

 

32.

Colhe cebolas

e alfaces a mãe –

aproxima-se o almoço.

 

33.

Estar assim

que as rãs

se aproximam.

 

34.

Sob o verde líquido

move-se rápida

uma pequena chama.

 

35.

Do outro lado

do muro

silêncio e vazio.

 

36.

Cantam os pássaros

as tardes

da minha infância.

 

37.

À beira do poço

não interessa

que passe a vida.

 

38.

Pequena célula

de um organismo maior –

nós.

 

39.

Sementes de nabo

levadas pelas formigas –

sementeira feita.

 

40.

Nada teme

o peixe

curioso.

 

41.

Na flor da fava

colhe o fruto

a abelha.

 

42.

A papoila

que agora colhi

já murchou.

 

43.

Arrefece lentamente

o café

do meu pai.

 

44.

Nunca só

no monte

agora menos.

 

45.

Sobre os milénios

do granito

décadas e o infinito.

 

46.

À sombra das algas

um peixe vermelho –

manhã de sol.

 

47.

O pai arranca

as couves velhas

e planta as novas.

 

48.

O sino interrompe

a declaração

da rã.

 

49.

Sob o olhar atento

das rãs

apanhamos sol.

 

50.

Na cadeira

o gato –

chuva de primavera.

 

51.

As vidas passaram

o rio

continua.

 

52.

Morango silvestre

maduro

sobre a língua.

 

53.

Espelho de água

o rio

nos meus olhos.

 

54.

Interminável mantra

de um grilo –

passo como um rio.

 

55.

Pedra sobre pedra

o muro

e a memória.

 

56.

À lareira

salada de agrião

treme o avô.

 

57.

É importante

perguntar

ao pó.

 

58.

Na manhã de sol

os chocalhos

das ovelhas.

 

59.

Flores de morango

quem comerá

o fruto?

 

60.

Urzes e carquejas

na flor da esteva

uma abelha.

 

61.

Olhos que vêem

as ruínas

que sabem das vidas?

 

62.

Cheiras-me ao monte

num dia quente

de primavera.

 

63.

A vinha do meu pai

à noite

é dos javalis.

 

64.

Sobre a figueira

cai a chuva

e o sol da manhã.

 

65.

Casa dos avós mortos

cai agora

o dente de leite.

 

66.

Revelado pelo sol

fino fio de teia –

manhã chuvosa.

 

67.

Amadurecem os figos

à chuva e ao sol –

manhã esmeralda.

 

68.

Café quente

à janela aberta

da manhã.

 

69.

Gentil chuva

de primavera –

o teu sorriso.

 

70.

A Lua não precisa

do meu olhar –

tenho que mijar.

 

71.

Sobre a ribeira

chuva –

papa-figos canta.

 

72.

Na língua

o sabor do café –

sol da manhã.

 

73.

Entre pesadas páginas

secam

as flores silvestres.

 

74.

Quieto na fraga

como uma árvore

ao sol.

 

75.

Na palma da mão

o mundo

rosmaninho e alecrim.

 

76.

Rosmaninho e alecrim

a frescura

dos teus lábios.

 

77.

Arrancando uma couve

meu pai –

“estás bem aí?”

 

78.

Neste trono de pedra

sou o rei

do alecrim.

 

79.

Sobre o canto das rãs

passa voando

uma andorinha.

 

80.

Minha mãe inquieta

meu pai triste –

onde para o gato?

 

81.

Dá horas

o sino –

“devia-se escachar.”

 

82.

Com sede

do teu corpo

bebo o sol.

 

83.

Sobre a lavanda

meu corpo o sol

e um caderno.

 

 

Abril-Maio 2021, Portugal (Torre de Dona Chama-Cidões)

 

João Bosco da Silva

segunda-feira, 3 de maio de 2021

 


À Beira da Distância

 

Terei apenas eu vivido aquelas noites de primavera

À beira do rio, terão os teus gemidos, sido ecos

Da minha solidão na terra que arrefece, enquanto

Todos os insectos anunciavam a sua vida

E as aves faziam declarações de amor e medo,

Terá o sal da tua pele sido apenas o reflexo

Da minha sede, o teu olhar, o luar de quem

Procura o vazio e a companhia do silêncio?

 

Torre de Dona Chama

 

30.04.2021

 

João Bosco da Silva

 


Primeira Cerveja

 

Naquela noite fui-me deitar sem lavar os dentes,

Queria levar para os sonhos aquele sabor adolescente

Que se abriu para mim, aqueles lábios marinados

A tarde toda no rio Tuela, enquanto os grilos prometiam

Acender todas as estrelas à noite, gravava na minha incerta

Eternidade, aquele sabor magnético, que procuraria

O resto da vida, para me esquecer um pouco

Da manhã em que não amanhecerei.

 

Cidões

 

27.04.2021

 

João Bosco da Silva

 


Outro Aniversário

 

“Já sou velho e nunca escalei o monte Fuji.”

Yasunari Kawabata

 

Em mais um ano acumulado nos ossos, nenhuma certeza se renova,

Somos apenas a distância que percorremos, no nosso pó futuro,

Tenho-me procurado longe, contudo, fiquei todo por onde passei,

Nas mulheres que amei, nas que apenas penetrei com tudo o que era

E não era grande coisa, somos um longo rastro de lesma,

Que as primeiras chuvas de outono apagam, como a sede do desejo,

A fome dos sonhos, o nosso nome das memórias dos que ficam.

 

Espanha? (Ar)

 

02.05.2021

 

João Bosco da Silva

 

Hotel Aeroporto

 

Neste quarto de hotel, espero a madrugada, nada mais,

O tempo passa, não durmo, dou voltas na cama vazia,

Enquanto giro sobre mim mesmo na escuridão mais profunda,

Vou olhando para o relógio, confirmando o tempo perdido

E a insónia, não sonho, não sinto nada além de um desconforto

Pesado e vazio, espero a madrugada e enquanto isso,

Vivo já todos os possíveis fracassos futuros, tão reais

Quanto o dia que acabará por nascer nos números do relógio.

 

Helsínquia

 

19.04.2021

 

João Bosco da Silva

 

Distância

 

Dizes que te apaixonas com demasiada facilidade

E que são breves essas paixões, dormiste com uma equipa

De hóquei, mal tinhas dezassete anos, os teus olhos

Têm a cor do desejo ou um castanho dourado, não sei,

Não fossem estes cabelos brancos e não teria vergonha

De me iludir, peidas-te e arrotas e desejo-te como o sol

Da manhã nos morangos à beira do rio na primavera.

 

Mar Báltico (Ar)

 

19.04.2021

 

João Bosco da Silva

 

Amanhecer no Aeroporto

 

Depois de se ter anunciado, o Sol finalmente aparece,

Por cima da floresta que rodeia o aeroporto, não sei

O que tanto se espera, se a partida, se o regresso,

A primeira é uma constante e o último uma impossibilidade

Para a percepção linear do nosso universo gelatinoso,

O sol mostra-se agora quase inteiro, o mundo boceja,

Nasce mais um dia, um dia, este dia a eternidade.

 

19.04.2021

 

Helsínquia

 

João Bosco da Silva