segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Poema Derrotado 

À tua frente a possibilidade do melhor poema, 
Porque da vida já pouco esperas, é só pousar os dedos 
Na ordem certa, mas o que os move é a mesma lesma 
Que passou, só a certeza brilhante daquele visco seco, 
Nas ervas do caminho outonal, nada resta dos bagos 
Dos verões passados, nada há a destilar a não ser 
O ódio e o vazio, o amor é um vinagre com que 
De manhã se lava a boca do gosto dos sonhos 
Ridículos que se vão pegando às manchas da almofada, 
À tua frente um espelho, velho, sujo, que come mais luz 
Do que a que reflecte, o poema possível a quem sacudiu 
Amigos com o tempo e ficou na companhia do pó 
E do cansaço que mil sonos não curam, a certeza silenciosa 
De todos os sorrisos azedos, sob os dedos que não tocam, 
Passam, deixam a despedida das moscas antes dos dias frios. 

14.10.2019 

Turku 

João Bosco da Silva 
Este Tempo Zombie 

Este tempo é como lamber velhos selos, usados  
Em cartas de amor para quem já morreu há muito, 
Esqueço-me de viver para me verter como um mercúrio lento e frio, 
Sobre as costas nuas de um anjo despenhado, 
Espeto a língua no ar moribundo à procura do mosto na distância, 
Da primeira lenha queimada que ilumina o nevoeiro do meu vazio, 
Mas nada, este tempo de bolsos vazios e sem vontade, 
Ter por alma um lençol sujo num quarto húmido e azedo, 
Uma sede que a vontade de mijar não consente, 
Este tempo de batidas silenciosas num esforço de levar, de levar, 
Sem lugar nenhum para onde cair, sem qualquer tentação 
Onde sujar o tédio imaculado, onde esfregar o cansaço de vazio, 
Este tempo como um relógio parado numa casa onde gente apodrece na cama, 
Frio como a chegada a Seia numa noite exausta, num carro emprestado 
Como o abraço de uma cona que foi perdendo o sabor, 
Este tempo de perfumes melancólicos de amores perdidos na vastidão de tantos outros braços, 
Este tempo dos velhos poemas escritos com a ressaca em noites de chuva 
Nos bancos de trás de carros velhos, este tempo de fim como única certeza, 
Tempo de ler Leopoldo María Panero na fronteira do abismo. 

14.10.2019 

Turku 

João Bosco da Silva