domingo, 31 de dezembro de 2023


Glórias Paralelas

 

Ah, a glória do que quase foi cometido,

Nesta fria manhã do último sol do ano,

Na companhia silenciosa de um café,

A glória daquele quase passo em frente

Antes de virar costas para nunca mais,

A resposta que se deu em palavras ditas

E não apenas no ruminar da almofada,

Todos os beijos, sim, todos os quase beijos

Que ofuscam a verdade dos que cederam

À coragem, ao salto no vazio, todos os poemas

Que ficaram no espaço entre os que foram escritos,

Os dentes em todos os pescoços

Naquelas fragrantes boleias de Junho,

Aquele último cartucho do avô morto,

Guardado para um irreversível mau momento,

Em vez de no ar de uma noite desesperada,

A abrir eternidades em direção às estrelas geadas.

 

31/12/2023

 

Turku

 

João Bosco da Silva

sábado, 30 de dezembro de 2023




Um Tropeço Nos Dias Frios

 

Tenho enfrentado o peso dos dias, o seu sorriso branco,

A sua ilusória leve aparência, alguém me pergunta,

Poderia estar eu morto no segundo seguinte,

Sorrio como os dias me sorriem, estamos sempre mortos

No segundo seguinte, como no anterior,

Vivemos numa linha fina e esperamos a primavera

Como se a nossa eternidade dependesse do renascer geral,

Têm-me visitado quartos escuros onde se entrou

Uma só vez, e agora é tudo o que resta,

Para aquecer as cinzas da solidão dos momentos,

Não é que tudo me pareça mais distante,

O problema é que me ouço como um grito coberto

Por uma avalanche, tudo isto enquanto espero a chegada

De um novo Sol, visitam-me ainda as partidas,

Os reencontros impossíveis, as dores que não se engolem.

 

30/12/2023

Turku

João Bosco da Silva


quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

 

Uma pausa para a eternidade

 

Nas folgas, costumava sentar-me num bar

E depois de uma ou duas cervejas, surgiam os poemas,

A caminho de casa, sentia-me leve, salvo, como depois

De uma confissão,  não me lembro da última vez

Em que me sentei num bar e escrevi na companhia

De uma cerveja e do então sempre presente moleskine,

Quero acreditar que esses momentos se reflectem ainda

Na eternidade, como aqueles que partiram,

Cuja existência perdura nos ecos, nos passos,

Que trouxeram tudo ao que é neste momento,

No entanto, sento-me agora na biblioteca,

A caminho do centro da cidade em procura

Deste alívio, cada vez se tem menos tempo

Para contemplar o que somos na passagem,

Relembrar quem só em sonhos agora nos visita.

 

Turku

 

14.13.2023

 

João Bosc da Silva

Reminiscências e Dois Sacos de Mercearias

 

Lembro-me bem que estava na segunda cerveja,

Já estava embalado numa confissão ridícula,

Porque o dia vazio, e a reminiscência de um pecado

Antigo, o melhor entretenimento num dia cinzento,

Tu entras pelo bar adentro, com dois sacos de mercearias,

Como calçada num templo, uma invasão, um sacrilégio,

A realidade do nosso lar, num espaço de meditação

E transgressão retrospectiva, senti-me quase

Envergonhado, como se me apanhassem

A bater uma punheta, na verdade, só não

Estava a foder uma das habituais porque

Não era hora disso, tive pena também,

Aqueles dois sacos de mercearias,

Que comeríamos juntos, como se tudo

Estivesse bem e não fosse tudo uma questão de tempo,

Aguentar o teatro porque não se sabe

Ao certo quando a peça acaba, sobreviver ao tédio

E à vontade de ver tudo absorvido pelo mesmo vazio,

Ir para casa com um dos sacos onde o papel

De cozinha que usarás para limpar o esperma da tua pele.

 

Turku

 

14.12.2023

 

João Bosco da Silva


domingo, 3 de dezembro de 2023

 


Dois Templos

 

Não há luxo, nem opulência que ultrapasse a importância da primeira fase da vida, não há nada que satisfaça tanto como algo simples, que nos permita de alguma forma um vislumbre daquele tempo, algo que nos leve, por um momento, de volta, algo como o cheiro do musgo.

 

Ah a frescura

do musgo

em Ginkaku-ji.

 

Como uma verde geada

na cara a frescura

do musgo em Ginkaku-ji.

 

Por isso entre o Kinkaju-ji e o Ginkaku-ji, o que me tocou mais profundamente, foi o segundo. Apesar do dourado ter habitado durante anos a minha vontade adulta, uma ideia quase mítica, contruída em parte com a ajuda de Yukio Mishima, uma vontade quase erótica de lhe pôr os olhos em cima, como de possuir aquele corpo, que depois do alívio da consumação, se torna apenas em algo demasiado real, levando o desejo,

 

Tão grande o desejo

rapidamente

sucumbe à beleza.

 

Incendiar o desejo

dourado

que te queima.

 

preferir o que leva de volta às tardes passadas nas fragas a contruir casinhas com pedras de granito e paus de giesta, cobertas com musgo, ou à altura de fazer o presépio, os primeiros natais, com aquelas figurinhas de barro, quase brinquedos, mas com as suas sérias imperfeições, aquele cheiro, quase o cheiro da infância, que se trazia impregnado na jovem pele.

Por isso o ouro, ao qual reconheço o valor que me foi doutrinado, o magnetismo e a beleza que me atraem, perde para a humilde frescura do musgo que rodeia o templo prateado (Ginkaku-ji):

 

Entre ouro

ou prata

escolho o musgo.

 

 

Quioto

 

Novembro 2023

 

João Bosco da Silva


 

O Monge e a Garrafa Vazia

 

Na última noite, no terraço do hotel,

Acabo a garrafa de sake que ontem me acompanhou,

A companhia podia ser pior, hoje, a uma distância segura,

Posso dizer que me foi inócua,

Esta é uma cidade para bolsos cheios de vontade,

De mais olhos com barriga, de andar, ao sol

E nas entranhas da terra, de ver tudo sempre

Pela primeira vez, de adormecer embalado pelo cansaço

E acordar antes do amanhecer, longe do mundo real,

Uma mostra insignificante deste sonho de meia-dúzia de dias,

A solidão de facto não se sente apesar do silêncio

E dos indicadores tomares o lugar das palavras,

A madeira será tudo o que ficou, a madeira de todos os tempos

E santuários reconstruídos, há azares que vem por bem

E mais vale a chuva vir e lavar a cinza e esquecer o que foi sagrado,

A memória insiste em pintar de dourado o que era verde,

Trocar as voltas, misturar sonhos com vontade,

Como se não fossem a mais absoluta verdade,

Há pouco, uma família acompanhou-me nuns versos,

Quase em silêncio, como se de repente, dessem de caras

Com um monge recitando mantras e é quase isso,

Na última noite, no terraço do hotel, com uma garrafa de sake vazia.

 

Tóquio

 

21/11/2023

 

João Bosco da Silva