segunda-feira, 29 de maio de 2023


 

Outro Pão

 

Enquanto amadurecia o trigo, a seiva quente escorria

Do teu corpo de ouro e sal, nas minhas mãos cheias

Toda a sorte do mundo, jovem ainda e fresca

Como a água da nascente longe das manilhas de betão,

A natureza num frenesim fecundo, no peito a eternidade

Ainda, acabada de nascer do cadáver da infância,

Quase tudo regressa, os dias quentes e as memórias

Que a distância vai turvando e tornando mais doces,

A um corpo cada vez mais estranho e estrangeiro,

Cada vez mais próximo da derradeira fronteira.

 

27.04.2023

 

Torre de Dona Chama

 

João Bosco da Silva

sábado, 27 de maio de 2023

Acabar Verões como se Acorda

 

Em tanta madrugada me foste a insónia,

Agora de olhos abertos te esqueço,

No entanto, as décadas não escondem

O que a geada e o fim do mais longo verão,

Rasgaram na pele dos sonhos e lá estamos nós,

Tu divorciada, eu perdido ainda,

Sentados num muro, num fim de tarde,

No ar a cor dos incêndios que acumulamos,

No teu sorriso outras tragédias

Que nos afastaram da juventude,

Os teus olhos outros de alguém

Conhecido e distante, nunca tocaram

A cor daqueles dióspiros que amadureciam

Mais rápido que as nossas ilusões,

O mundo continua um estranho

Mais propício a desencontros,

Os teus lábios um segredo que se finge

Compreender, porque é mais fácil continuar,

Assim, a acabar verões como se acorda.

 

 

Turku

 

27/05/2023

 

João Bosco da Silva

quarta-feira, 10 de maio de 2023

 


Sauternes

 

Quando és velho e estás só e o amor da tua vida é a vontade

De foder aquela loira demasiado jovem, o vinho se multiplica

Numa bênção cara como o sol, a polícia ou uma ambulância

Histérica em direcção a um novo fim, promete o renascimento

Numa minhoca ou outro ser moralmente superior,

Quando se começam a queixar das costas e o que tu querias

Era dois dias no sul da Itália com aquela loira demasiado jovem,

Dois dias, porque ao terceiro dia ressuscitam consciências,

Aquela loira a confundir-se na praia com o próprio Sol e o desejo

E todos os sonhos que encobrem os cabelos brancos.

 

Bordéus

 

18/04/2023

 

João Bosco da Silva

 


Haikus bordaleses

 

Debaixo da mesa do café

excitado dança

um pequeno pardal.

 

No espaço em branco

surge

um pouco de nada.

 

Bêbado em Bordéus

e a redundância

de estar.

 

Trazido numa semente

pelo vento

um pequeno pentelho.

 

Debaixo das pernas

da rapariga

cantam os pardais.

 

Abril 2023, Bordéus

 

João Bosco da Silva