domingo, 3 de dezembro de 2023

 


Dois Templos

 

Não há luxo, nem opulência que ultrapasse a importância da primeira fase da vida, não há nada que satisfaça tanto como algo simples, que nos permita de alguma forma um vislumbre daquele tempo, algo que nos leve, por um momento, de volta, algo como o cheiro do musgo.

 

Ah a frescura

do musgo

em Ginkaku-ji.

 

Como uma verde geada

na cara a frescura

do musgo em Ginkaku-ji.

 

Por isso entre o Kinkaju-ji e o Ginkaku-ji, o que me tocou mais profundamente, foi o segundo. Apesar do dourado ter habitado durante anos a minha vontade adulta, uma ideia quase mítica, contruída em parte com a ajuda de Yukio Mishima, uma vontade quase erótica de lhe pôr os olhos em cima, como de possuir aquele corpo, que depois do alívio da consumação, se torna apenas em algo demasiado real, levando o desejo,

 

Tão grande o desejo

rapidamente

sucumbe à beleza.

 

Incendiar o desejo

dourado

que te queima.

 

preferir o que leva de volta às tardes passadas nas fragas a contruir casinhas com pedras de granito e paus de giesta, cobertas com musgo, ou à altura de fazer o presépio, os primeiros natais, com aquelas figurinhas de barro, quase brinquedos, mas com as suas sérias imperfeições, aquele cheiro, quase o cheiro da infância, que se trazia impregnado na jovem pele.

Por isso o ouro, ao qual reconheço o valor que me foi doutrinado, o magnetismo e a beleza que me atraem, perde para a humilde frescura do musgo que rodeia o templo prateado (Ginkaku-ji):

 

Entre ouro

ou prata

escolho o musgo.

 

 

Quioto

 

Novembro 2023

 

João Bosco da Silva


 

O Monge e a Garrafa Vazia

 

Na última noite, no terraço do hotel,

Acabo a garrafa de sake que ontem me acompanhou,

A companhia podia ser pior, hoje, a uma distância segura,

Posso dizer que me foi inócua,

Esta é uma cidade para bolsos cheios de vontade,

De mais olhos com barriga, de andar, ao sol

E nas entranhas da terra, de ver tudo sempre

Pela primeira vez, de adormecer embalado pelo cansaço

E acordar antes do amanhecer, longe do mundo real,

Uma mostra insignificante deste sonho de meia-dúzia de dias,

A solidão de facto não se sente apesar do silêncio

E dos indicadores tomares o lugar das palavras,

A madeira será tudo o que ficou, a madeira de todos os tempos

E santuários reconstruídos, há azares que vem por bem

E mais vale a chuva vir e lavar a cinza e esquecer o que foi sagrado,

A memória insiste em pintar de dourado o que era verde,

Trocar as voltas, misturar sonhos com vontade,

Como se não fossem a mais absoluta verdade,

Há pouco, uma família acompanhou-me nuns versos,

Quase em silêncio, como se de repente, dessem de caras

Com um monge recitando mantras e é quase isso,

Na última noite, no terraço do hotel, com uma garrafa de sake vazia.

 

Tóquio

 

21/11/2023

 

João Bosco da Silva