terça-feira, 25 de outubro de 2022

Borralho 8

 

Quem sou eu agora, para aquele garoto que se sentava

A cavalo do pastor-alemão da passadora galega viúva,

Na cozinha do fumeiro, enquanto as chouriças pingavam

Uma gordura laranja na alma, o meu sonho da altura

Era ter um fato branco como o Don Johnson no Miami Vice,

Garoto realista não sonhava sequer com um Ferrari Testarossa,

Será a viúva viva ainda, com a pastora que julgou que o busto

De Jesus Cristo sob o papel de embrulho era um cão, o cão era León,

Tinha morrido como a infância, e julgou ser sacrilégio o engano,

Quando todos nos rimos das cadenas de adolescente

Presas ao pescoço longínquo do encantador de pastores-alemães,

O ridículo das modas que regressam décadas depois,

Tornando outros adolescentes nas incertezas que me atormentavam,

A frescura será sempre a água gelada daquele cano

Ao pé daquelas ameixeiras em Pontebarxas, a inocência também.

 

25.10.2022

 

Turku

 

João Bosco da Silva


 

Borralho 7

 

Enquanto caminhava até ao centro da cidade e sentia o inverno

E a morte aproximarem-se com cuidados de folhas caídas,

Magicava um verso, como há décadas olhando a luz verde

De um boneco num semáforo na Avenida dos Aliados,

A companhia mais fiel será sempre a página em branco,

Mesmo em madrugadas precocemente geladas,

Quando todos os amores e abusos consentidos,

Já nos esqueceram há uma amante e dois filhos atrás,

Conseguimos encontrar cada um, nos piores e melhores

Momentos, podemos alegoricamente confessar os piores pecados,

Revelar os desejos impossíveis à luz da quantidade de prata

Nas têmporas, a página em branco, do tamanho de todas

As madrugadas possíveis, capaz de aguentar o vazio

De todas a garrafas e das mãos que com elas se sentem cheias,

Esta cidade que em qualquer estação me traz o fogo aos olhos,

Mesmo com a decadência deste cemitério de inocências,

Este corpo aproximando-se da ignorância maior de

Quatro décadas, os autocarros partem e as janelas ficam

Ainda numa curiosidade fresca e ruiva, esta página

Em branco, estas pernas que caminham ao mesmo ritmo

Dos dedos, na madrugada, agarrados a um copo, tacteando

Letras, como quem aos poucos envenena a pureza com a verdade,

Um verso, quem tem uma página em branco, nunca estará só,

Nem numa cidade onde os anos tornaram o corpo invisível.

 

25.10.2022

 

Turku

 

João Bosco da Silva