quinta-feira, 28 de outubro de 2021

 

Novembro

 

Volta o mundo a encerrar-se numa apneia escura,

Numa nudez de ossos e ramos fantasmagóricos

Erguidos ao mercúrio frio do céu demasiado baixo,

Voltam a ser poucos os prazeres que façam o dia valer

O gasto da vida, um café quente que não se deixou queimar,

Acordar sem a necessidade de um despertador,

O silêncio na casa para te receber de braços abertos,

Espaço para respirar e suspirar em segredo,

Sacudir dos cantos do bigode o que ficou dos sonhos,

Pouco se levará daqui, a não ser que se inventem

Novos pecados, transgressões ainda permitidas

A cadáveres ressequidos pelo cansaço e pela derrota,

Volta a luz a ser rara, o cérebro mirra, como as folhas

Da figueira, a poucos dias de Novembro, nada interessa

Agora, a primavera impossível também há-de chegar.

 

28.10.2021

 

Turku

 

João Bosco da Silva

terça-feira, 19 de outubro de 2021

 


Chouriças para Lambões

 

E se vos fosseis todos foder, que tal, vós que nunca tocastes os tomates

Do absoluto, tão cheios de palavras e de efemeridades, barrigas cheias de nada,

E se fosseis todos limpar o plástico do rio, que foi esquecido dos moranguinhos doces

Da aldeia abandonada que bem chupastes quando convinha,

Em Vilar de Ouro, vinho glorioso houvessem nomes de peso a dar-lhe alma,

Noventa e nove diria o senhor Parker Jr. e se vos fosseis foder,

Isto não é fácil com uma de André e duas de Bordeaux,

O Alexandre despertou agora todos os fãs do mundo quando há dez mil geadas atrás,

Sentando num radiador eléctrico, líamos o Duende dado por um velho amante,

Antes de subirmos o monte de São Brás, amante da irmã do mestre,

Que hoje num sossego absoluto aparentemente, se resignou à vida esperada,

Não a que lhe esperei, nunca se espera resignação de um mestre,

Por isso continuo a engolir tinto muitos anos depois, ficando surpreendido

Com um cu que se me abre quando me tinha prometido que nunca,

Aquela ruiva, aquela ruiva, aquela ruiva, foram reais, até à última gota,

Ou terão sido todas sonhos numa, numas noites vazias, que triste agora, olhar os dedos,

Errar,

As teclas, estes mesmo merdas que limpam o cu, que se meteram nas conas que desejaram

Um erro, porque sempre fui um erro, uma sardinha assada a mais, um copo

De alvarinho minhoto a mais, mais valia ter-me levado o rio mais os bonecos,

Valerá mesmo a pena mais uma manhã em direcção ao nada, encher chouriças,

Será justo depois do amigo me esperar, para falarmos dos filmes do Kubrick,

Ou do amadurecimento das cerejas, será justo, estar eu aqui ainda a testar a resistência

Do fígado, a capacidade dos pulmões para o suspiro e a falta de tomates para meter

Aquela lâmina japonesa nas tripas ou ao menos à moda europeia nos pulsos,

Caralho, uma de champanhe e duas de bordeaux, ainda ninguém se decidiu

A não ser a puta que nos leva todos os sonhos, continuo ao olhar os dedos

Que escrevem isto, como se nos visse a entrar no restaurante Barcarola,

Cada um uma francesinha, qual delas teremos que culpar, o ridículo da vida,

Adormecer-me-ia agora com graça, cor-de-rosa, aquele tom de loucura

Do Conde de Ferreira, quando tudo me alimentava a vontade,

Quando terminará este poema, ridículo, de saudades, de fim, de chouriças para lambões.

 

Turku

 

João Bosco da Silva

 

19.10.2021


terça-feira, 5 de outubro de 2021

 

Fúria e Vinho

 

Há algum tempo que não consigo sentir nada mais do que fúria e vinho,

Sinto que fui lobotomizado, pela dor, pelos comprimidinhos

Para me fazerem berrar com uma doçura de lã no rebanho,

Engraçado que só depois de encontrar Egas Moniz

No meu cérebro raquítico, dei com o picador de gelo supraorbital

E a palavra lá surgiu, costumavam cair, agora tenho que procurá-las

Num sótão escuro e poeirento, de onde todos os brinquedos da minha

Infância foram atirados para o lixo, vinho e raiva, este que há oito

Mil anos é produzido naquela região, tão escuro quanto a tinta

Que agora não uso para meter este lixo no teu cérebro,

Um picador de gelo, no entanto, tenho sonhado com o amigo morto,

Dou-lhe uma palmada no joelho, como se a sua morte fosse a maior partida,

Bem me apanhaste com essa, infelizmente, também não me lembro

Da última vez em que tenha sonhado sem saber que aquilo é tudo

Uma almofada babada, um ressonar ridículo, à espera de uma sede

Absurda, de uma manhã sem sabor, copos vazios para lavar

E uma escova eléctrica mais escura que o carvão, pouco me interessa,

Como sinto a palma a bater num joelho que existe apenas no meu cérebro

Lobotomizado, que não sente nada mais a não ser fúria e vinho tinto,

Não sei, como não compreendo como o cheiro das folhas da figueira

Que aos poucos, tão pequena, se desnuda no súbito outono nórdico,

Me aquecem como uma lareira, sem as brasas furarem os sofás

De poliuretano, uma palavra difícil como a vergonha, por isso raras

Me visitaram, por causa daqueles buraquinhos na minha alma,

Como no sofá, tanto complexo para agora abrir o saco do lixo,

A alma, o podre dos sonhos, o maior segredo de um homem, o seu vazio.

 

05.10.2021

 

Turku

 

João Bosco da Silva

sábado, 2 de outubro de 2021



Castelos e Crepúsculos

 

Daquela varanda víamos o castelo pintado pelo crepúsculo,

Uma amostra de eternidade, uma permanência ilusória,

Éramos jovens e estrangeiros, tu sentavas-te no meu colo

E ao teus lábios pareciam ter o sabor do sol que se despede

Do granito em Junho, sob a tua saia agarrava a certeza

Das tuas nádegas, enquanto me procuravas a fome

E me fazias deslizar para dentro de ti com a  destreza da desgraça,

E ficavas assim, sorvendo vinho, subindo e descendo,

Ao ritmo do Sol, fazendo tempo até ao jantar,

Numa pizzaria qualquer, que me pagarias também,

Depois do táxi da estação ferroviária até àquelas águas-furtadas,

Éramos jovens e eternos, hoje ambos vivemos apenas

No que um perfume familiar nos traz de volta,

Na luz do crepúsculo que ilumina um castelo em ruínas.

 

Turku

 

02.10.2021

 

João Bosco da Silva

 


O Único Último Regresso

 

Há dez anos, regressar ainda era possível, a vida toda por viver,

Quando não sabíamos que estava quase tudo feito nos olhos do destino,

As mulheres dos verões passados, pareciam distantes como as folhas

Vermelhas em Outubro, o inverno uma certeza desconfortável,

Como a evidência dos primeiros cabelos brancos no espelho,

O horizonte era um vasto oceano, o passado uma confortável

Serra, familiar como uma lareira ou a roupa geada no estendal,

Há dez anos éramos tanto, éramos tudo, agora ou somos nada ou vazio.

 

Turku

 

02.10.2021

 

João Bosco da Silva