sábado, 31 de agosto de 2019

Canícula 

Uma sombra abafada no aperto da canícula, 
Essa promessa tão bem mentida, os galhos quebrados 
No silêncio que ninguém julga, tudo seca ao Sol, 
Tudo apodrece anónimo, todos sonham a vida dos outros 
Em pesadelo, nada serve aos egos insuflados 
Pelo ressentimento das escolhas impostas 
Pela pobreza de espírito, a estas horas mortas, 
Onde vibram asas de zinco, chupando um sangue 
Inútil, só a solidão cantada no galinheiro vazio, 
Refresca o cansaço de uma alma que há muito 
Perdeu ilusões de luz e eternidade. 

Torre de Dona Chama 

30.07.2019 

João Bosco da Silva 
Tesão 

Cada ilha um sonho que ficou numa distância segura e feliz, 
Entre nós, apenas a bruma de um dia quente, é Julho 
E tenho novamente dezasseis anos e os pêlos dourados 
Do meu mento bem alimentados com o mel daquelas pregas adolescentes, 
Refrescadas pela tarde no rio, estou velho no que os anos me pintaram na pele 
E no papel, contudo, sinto-me capaz de chegar aos sonhos 
Num orgasmo, sem esforço, sem evocar épicos clássicos, 
Apenas com o bater duro daquelas ondas douradas nas minhas salgadas 
Virilhas e a sinfonia verde das cigarras nos pinheiros. 

Agistri 

16.07.2019 

João Bosco da Silva 

sexta-feira, 30 de agosto de 2019

No Restaurante Avissinia 

com Rimbaud, Platão, Sócrates, Henry Miller, Confúcio e Tatiana Faia 

Cheguei ao ponto em que nunca traficarei armas na Abissínia, 
Fiquei encalhado nas minhas vírgulas e versos tão longos como vazios, 
Consegui sentir-me invisível na Acrópole, sorri até por me lembrar 
Daquela noite de Julho quando li o Banquete de Platão, 
E me pareceu mais cheia do que todas as pedras nuas, 
Já pouco espero da amizade, muito menos ser salvo de um abismo 
Que o meu próprio vazio escavou, mas afinal há quem nos encontre 
Ao fim de uma tarde de pesadelo em ar-condicionado e nos leve 
A ver, entre pinheiros, uns buracos numas rochas, que uma prisão, 
Onde dizem Sócrates ter estado preso, e nos liberta, o mestre disse, 
Não uses o canhão para matar mosquitos, ou algo do género, 
Numa outra noite que nunca aconteceu, esta tarde foi verdadeira 
E o cansaço nem ousou impor-se quando a invisibilidade sucumbiu 
À amizade, vomitei ali mesmo todas as sementes de girassol, 
Como se de um vazio se tratasse e fomos jantar ao restaurante Avissinia, 
Parece tudo tão breve quando se trazem ruínas dentro. 

Turku 

30.08.2019 

João Bosco da Silva
Ave-Marias 

         “Para chegar à luz                               
tens de te apoiar na tua sombra.” 
Adonis 

Chegou o último ferry, Kerouac está em Nova Iorque e é Novembro, 
Fumo um cigarro lento e penso no poeta amigo em Bucareste, 
Os vizinhos falam um idioma qualquer, só compreendo o desembrulhar do mar 
Nas rochas quentes, as cigarras cantando verões eternos e impossíveis, 
Somos feitos disto, palavras e crepúsculos, com ou sem sinos, 
Distâncias que se trazem sempre bem junto ao nome e ao que nos 
Falha uma só vez, tanta vida nas casas brancas da ilha em frente, 
Nunca escreverei sobre nenhuma delas, faltam-me dedos, 
Tenho ao menos olhos para todas as montanhas, como fome 
Pelas pregas de carne que se desenrolam rosadas na minha vontade rochosa. 

Agistri 

14.07.2019 

João Bosco da Silva 

domingo, 25 de agosto de 2019

Polvo Assado às Portas da Biblioteca de Adriano 

Afinal o Jack Kerouac era pedófilo, tive que chegar a páginas muitas 
Do sexto ou sétimo livro, para o ver escolher a prostituta mais jovem 
De um bordel mexicano, catorze anos, os tempos eram outros, está bem, 
Mas naquele tempo uma garota de catorze anos ainda tem tetinhas de bezerra, 
É uma escultura medieval, a pentelheira uma centopeia tímida sobre a púbis, 
Uma criança ainda, gostos não se discutem até que se trate de arrancar asas a anjos, 
Aqui também era normal ter um miúdo bem queimado pelo Sol 
Para enrabar depois das lições, o polvo estava bom, obrigado, faltou o alho. 

Atenas 

10.07.2019 

João Bosco da Silva