domingo, 5 de setembro de 2021

 


Agosto

 

Nada se compara à melancólica luz dourada ao fim da tarde do último dia de Agosto

À beira do rio, silencioso, ecoando ainda na memória a voz dos emigrantes que já partiram

E eu permaneço, pelo menos para já, nas lojas cheias de cadernos e lápis,

Anuncia-se o início que sela o fim de uma liberdade real e quente,

Sempre vivi melhor em Agosto, sempre foi mais fácil apaixonar-me em Agosto,

Talvez porque já o ame, incondicionalmente, apesar do excesso de música pimba,

Das canículas incapacitantes e do meu mau francês, o fim de Agosto era como imaginava

Que a morte fosse, antes de a ver frouxar o aperto daquela mão, nada se compara

À melancólica luz dourada ao fim da tarde do último dia de Agosto à beira de um rio,

Tal como será, quando já todos formos uma partida sem regresso.

 

Cidões

 

31.08.2021

 

João Bosco da Silva

Poder Voltar - Haikus


 

1.

Sob o mar branco

de tranquilidade

todos os infernos.

 

2.

No rio da infância

toca-se

a eternidade.

 

3.

Dentro do rio

passo

como um dia quente.

 

4.

Os pés cresceram

as pedras

ficaram afiadas.

 

5.

Logo foge a cobra

do medo

dos homens.

 

6.

De cachos abertos

a vinha recebe

a doçura do Sol.

 

7.

Sobre o lume

a grelha

aguarda o crepúsculo.

 

8.

No silêncio da distância

os cansaços

que nos esperam.

 

10.

Besouro negro

que procuras

no girassol?

 

11.

À sombra da macieira

apodrecem as maçãs –

não há fome.

 

12.

Mantêm-se altivos

mesmo na canícula

os girassóis.

 

13.

A adega do avô

fresca

como na infância.

 

14.

Que ano esperam

aquelas garrafas

no canto escuro?

 

15.

Peixes e alfaiates

os meus olhos

e a persistência.

 

16.

Corre o rio

e permanece –

folha amarela.

 

17.

Persiste na canícula

o ramo espetado –

pai dorme a sesta.

 

18.

Salvo pela moral

o peixe

que a cobra pescou.

 

19.

Cobra contra peixe

ambos lutam

pela vida.

 

20.

Quase quarenta

à sombra

eu feliz como vinte.

 

21.

À sombra da figueira

amadurecem as uvas

espera a aranha.

 

22.

Só as moscas

se atrevem

no silêncio da canícula.

 

23.

Nos olhos fechados

ao Sol

ainda as papoilas.

 

24.

Na lavanda

espetada na barba

uma pequena aranha.

 

25.

Sabem-me à infância

as amoras temperadas

com o pó dos caminhos.

 

26.

O Sol no seu cabelo

de qual nasce

a luz?

 

27.

Em peregrinação

às fragas da infância

pela canícula.

 

28.

Três vezes neste cruzamento

me extraíram

a seiva da figueira.

 

29.

Que frescura terá

a minha

sombra?

 

30.

Em três corpos escorreram

neste cruzamento

lágrimas de figueira.

 

31.

Quantas formigas

terei pisado

neste passeio bucólico.

 

32.

Compreendem-se melhor

as fragas

em silêncio.

 

33.

Debaixo do carvalho

frescos os sons

da povoação distante.

 

34.

O ar quente

faz tremer a distância –

canícula.

 

35.

Que te atormenta

galo que cantas

na canícula?

 

36.

Duas estrelas

dançarinas –

o sol no seu cabelo.

 

37.

Grilos cantam

cães ladram –

lua laranja.

 

38.

Que alívio não compreender

o ladrar dos cães –

noite de verão.

 

39.

O cuco aproveita

a frescura da manhã

para cantar.

 

40.

Cuco canta

um rádio toca –

manhã de Agosto.

 

41.

Sobre a terra seca

cai um figo

antes de amadurecer.

 

42.

Protegida pelos girassóis

cresce

uma beringela.

 

43.

Ouvir o cuco

dá-me saudades

do negrilho que secou.

 

44.

Quando chegar

a primeira geada

onde cantará o cuco?

 

45.

Na terra onde secaram

dois pessegueiros

crescem quatro oliveiras.

 

46.

Que faria o caçador

se compreendesse

o cantar da rola?

 

47.

Manhã fresca

a rola canta

como a água corre.

 

48.

Grilos cantam

estrelas brilham

gemidos no cruzamento.

 

49.

No estendal abandonado

as molas da roupa

esperam.

 

50.

De manhã as moscas

apressadas

como gente ensonada.

 

51.

Nos olhos perdidos

a aridez

do centro da cidade.

 

52.

Põe-se o Sol

e eu

nela.

 

53.

Apertada num vestido

verde

a minha vontade.

 

54.

Folha de salgueiro

cai sobre o rio –

entardecer.

 

55.

Parece chover

ao entardecer –

alfaiates no rio.

 

56.

No canto dos grilos

ecoa o Sol

que se pôs.

 

57.

Sob a lua laranja

cantam os grilos –

noite quente.

 

58.

Ao longe o candeeiro

da aldeia

quase deserta.

 

59.

“Acaba sempre

o verão” –

cantam os grilos.

 

60.

Numa casa vizinha

alguém mete telhado novo –

manhã de Agosto.

 

61.

Da fraga granítica

brota

o pinheiro bravo.

 

62.

Cultiva distâncias

colhe

solidões.

 

63.

Defecado na Primavera

o excremento

também secou.

 

64.

Lembram-me

amantes perdidas

os montes queimados.

 

65.

Que agradável

o vento

antes da tempestade.

 

66.

Pinheiro tombado

cresceu demasiado

em pouca terra.

 

67.

Na ribeira seca

um mar

de moscas.

 

68.

Levamos nosso corpo

ao lugar onde foi jovem –

ilusão de permanência.

 

69.

Antes do relâmpago

está já

o verão acabado.

 

70.

Aquela nuvem distante

será água

sobre esta fraga.

 

71.

Floresce a flor

do cacto –

tempestade de Setembro.

 

72.

Hoje ninguém

se queixará do pó –

dia de tempestade.

 

73.

Acariciando o gato velho

a água da chuva

vai secando.

 

74.

Será este Outono

o nosso

velho gato?

 

75.

O pai diz:

“Vou plantar nabos” –

choveu.

 

76.

Enquanto o gato se limpa

o sol regressa

depois da tempestade.

 

77.

Se as emigrantes

me quisesses tanto em Agosto

como as moscas em Setembro.

 

78.

Uva a uva

haiku a haiku

moscatel e Yosa Buson.

 

79.

Terra lavrada

depois da chuva –

que perfume antigo.

 

80.

A água que acabou de cair

bebe-a o gato

do balde.

 

81.

Sabendo do Inverno

tomo ao lado das romãs

o sol de Setembro.

 

82.

Sentado sobre a pedra

trazida da ribeira

também eu passo.

 

83.

Nos ramos secos do carrasco

os líquenes

continuam a luta.

 

 

 

Agosto-Setembro 2021

 

Torre de Dona Chama, Cidões, Porto

 

João Bosco da Silva

 REVISITAÇÃO

para o Boschkowski Agora que viveu o poeta pode voltar para trazer-se de volta pelos montes pela floresta para observar os seus passos trouxeram-no de novo ao quarto da infância à cama de rede aos amigos que não morreram às noites intermináveis onde mais do que uma estrela lhe veio trazer o sono O poeta viveu e voltou para respirar por entre os trilhos e as cascatas adivinho do vento e das palavras veio ao seu domínio para tocar folhas e raízes e escrever de volta que tudo estará bem enquanto ele puder aqui vir o poeta volta ao pasto para o piquenique dos elementos. Ricardo Marques


 

Reminiscências Sobre Granito

 

Dentro de um lagar que os séculos tornaram obsoleto

E cujas origens a memória popular tornou mito,

Relembro com uma antiga amante uma noite

Que caminha para uma década, foi tudo tão breve

E intenso como um acidente que os desencontros

Do destino tornaram fatal, quando nos entregamos

Totalmente a alguém numa noite, com a voracidade

De pele rasgada sobre granito e eternidade,

Não temos tempo de ser infelizes e é apenas isso

Que levamos até a memória nos falhar, dez anos

Não são nada e uns segundos levam tudo.

 

25.08.2021

 

Lagar dos Mouros

 

João Bosco da Silva