domingo, 12 de setembro de 2021

 


Emigrante

 

Que fazes aqui ainda, neste hotel da capital, com a pele ainda morena

Do sol que te conhece, que bebes com uma sede de anos,

Essa pele que treme e estranha, estranha sempre, este súbito fim

De Verão nórdico, que nem sempre se concretiza, que fazes ainda,

Regressando como se fosse uma obrigação, a um país ao que deste

A juventude e nunca será teu, onde diluíste a alma até te esqueceres

O que significam as raízes que um dia te apertavam o peito

Até uma seiva chamada melancolia ou saudade te esmagar com doçura,

Regressas sem a graça da juventude, no hotel nenhuma recepcionista

Te acompanhará e adormecerá no teu quarto, ao teu lado, vazio,

Onde a escuridão não é absoluta por causa da luz do ar condicionado,

De manhã deixarás umas chaves anónimas na recepção,

Ninguém te abraçará numa despedida definitiva de quem se deu

Completamente numa noite, partirás de regresso ao limbo onde pertences,

Levando os dias que te levaram a juventude, à morte e ontem

Já foi demasiado tarde quando partir e regressar a casa se tornou

Na mesma coisa, jamais pertencerás a um lugar a não ser ao caminho.

 

Helsínquia

 

04.09.2021

 

João Bosco da Silva

segunda-feira, 6 de setembro de 2021


Aquela Águia Que Morta Voava

 

Fosse a morte sueca, neste mundo banhado pela peste

E o medo, nos desse ela mais oportunidades para confirmarmos

Que a vida faz ainda menos sentido, pouco somos mais do que

A vontade de questionar, quando cessam as perguntas, acabamos,

O nosso corpo é apenas um circo ambulante,

Fosse a morte sueca, e nos permitisse sempre regressar

A casa para morrer, esta vida que nos leva a tantos infernos,

Longínquos, que procuramos como uma terra santa,

A carne doutros corpos que se abre em tormenta e redenção,

Fosse a morte sueca e não iríamos sozinhos para o vazio,

Quando o vazio é estarmos sós, e a nossa busca pela perfeição

É o que vai tornando o mundo mais imperfeito,

Fosse a morte sueca e esperaria um momento mais,

Mas a morte não joga xadrez, é um relâmpago sem regras,

E o medo sempre matou mais que qualquer peste.

 

06.09.2021

 

Turku

 

João Bosco da Silva


domingo, 5 de setembro de 2021

 


Agosto

 

Nada se compara à melancólica luz dourada ao fim da tarde do último dia de Agosto

À beira do rio, silencioso, ecoando ainda na memória a voz dos emigrantes que já partiram

E eu permaneço, pelo menos para já, nas lojas cheias de cadernos e lápis,

Anuncia-se o início que sela o fim de uma liberdade real e quente,

Sempre vivi melhor em Agosto, sempre foi mais fácil apaixonar-me em Agosto,

Talvez porque já o ame, incondicionalmente, apesar do excesso de música pimba,

Das canículas incapacitantes e do meu mau francês, o fim de Agosto era como imaginava

Que a morte fosse, antes de a ver frouxar o aperto daquela mão, nada se compara

À melancólica luz dourada ao fim da tarde do último dia de Agosto à beira de um rio,

Tal como será, quando já todos formos uma partida sem regresso.

 

Cidões

 

31.08.2021

 

João Bosco da Silva

Poder Voltar - Haikus


 

1.

Sob o mar branco

de tranquilidade

todos os infernos.

 

2.

No rio da infância

toca-se

a eternidade.

 

3.

Dentro do rio

passo

como um dia quente.

 

4.

Os pés cresceram

as pedras

ficaram afiadas.

 

5.

Logo foge a cobra

do medo

dos homens.

 

6.

De cachos abertos

a vinha recebe

a doçura do Sol.

 

7.

Sobre o lume

a grelha

aguarda o crepúsculo.

 

8.

No silêncio da distância

os cansaços

que nos esperam.

 

10.

Besouro negro

que procuras

no girassol?

 

11.

À sombra da macieira

apodrecem as maçãs –

não há fome.

 

12.

Mantêm-se altivos

mesmo na canícula

os girassóis.

 

13.

A adega do avô

fresca

como na infância.

 

14.

Que ano esperam

aquelas garrafas

no canto escuro?

 

15.

Peixes e alfaiates

os meus olhos

e a persistência.

 

16.

Corre o rio

e permanece –

folha amarela.

 

17.

Persiste na canícula

o ramo espetado –

pai dorme a sesta.

 

18.

Salvo pela moral

o peixe

que a cobra pescou.

 

19.

Cobra contra peixe

ambos lutam

pela vida.

 

20.

Quase quarenta

à sombra

eu feliz como vinte.

 

21.

À sombra da figueira

amadurecem as uvas

espera a aranha.

 

22.

Só as moscas

se atrevem

no silêncio da canícula.

 

23.

Nos olhos fechados

ao Sol

ainda as papoilas.

 

24.

Na lavanda

espetada na barba

uma pequena aranha.

 

25.

Sabem-me à infância

as amoras temperadas

com o pó dos caminhos.

 

26.

O Sol no seu cabelo

de qual nasce

a luz?

 

27.

Em peregrinação

às fragas da infância

pela canícula.

 

28.

Três vezes neste cruzamento

me extraíram

a seiva da figueira.

 

29.

Que frescura terá

a minha

sombra?

 

30.

Em três corpos escorreram

neste cruzamento

lágrimas de figueira.

 

31.

Quantas formigas

terei pisado

neste passeio bucólico.

 

32.

Compreendem-se melhor

as fragas

em silêncio.

 

33.

Debaixo do carvalho

frescos os sons

da povoação distante.

 

34.

O ar quente

faz tremer a distância –

canícula.

 

35.

Que te atormenta

galo que cantas

na canícula?

 

36.

Duas estrelas

dançarinas –

o sol no seu cabelo.

 

37.

Grilos cantam

cães ladram –

lua laranja.

 

38.

Que alívio não compreender

o ladrar dos cães –

noite de verão.

 

39.

O cuco aproveita

a frescura da manhã

para cantar.

 

40.

Cuco canta

um rádio toca –

manhã de Agosto.

 

41.

Sobre a terra seca

cai um figo

antes de amadurecer.

 

42.

Protegida pelos girassóis

cresce

uma beringela.

 

43.

Ouvir o cuco

dá-me saudades

do negrilho que secou.

 

44.

Quando chegar

a primeira geada

onde cantará o cuco?

 

45.

Na terra onde secaram

dois pessegueiros

crescem quatro oliveiras.

 

46.

Que faria o caçador

se compreendesse

o cantar da rola?

 

47.

Manhã fresca

a rola canta

como a água corre.

 

48.

Grilos cantam

estrelas brilham

gemidos no cruzamento.

 

49.

No estendal abandonado

as molas da roupa

esperam.

 

50.

De manhã as moscas

apressadas

como gente ensonada.

 

51.

Nos olhos perdidos

a aridez

do centro da cidade.

 

52.

Põe-se o Sol

e eu

nela.

 

53.

Apertada num vestido

verde

a minha vontade.

 

54.

Folha de salgueiro

cai sobre o rio –

entardecer.

 

55.

Parece chover

ao entardecer –

alfaiates no rio.

 

56.

No canto dos grilos

ecoa o Sol

que se pôs.

 

57.

Sob a lua laranja

cantam os grilos –

noite quente.

 

58.

Ao longe o candeeiro

da aldeia

quase deserta.

 

59.

“Acaba sempre

o verão” –

cantam os grilos.

 

60.

Numa casa vizinha

alguém mete telhado novo –

manhã de Agosto.

 

61.

Da fraga granítica

brota

o pinheiro bravo.

 

62.

Cultiva distâncias

colhe

solidões.

 

63.

Defecado na Primavera

o excremento

também secou.

 

64.

Lembram-me

amantes perdidas

os montes queimados.

 

65.

Que agradável

o vento

antes da tempestade.

 

66.

Pinheiro tombado

cresceu demasiado

em pouca terra.

 

67.

Na ribeira seca

um mar

de moscas.

 

68.

Levamos nosso corpo

ao lugar onde foi jovem –

ilusão de permanência.

 

69.

Antes do relâmpago

está já

o verão acabado.

 

70.

Aquela nuvem distante

será água

sobre esta fraga.

 

71.

Floresce a flor

do cacto –

tempestade de Setembro.

 

72.

Hoje ninguém

se queixará do pó –

dia de tempestade.

 

73.

Acariciando o gato velho

a água da chuva

vai secando.

 

74.

Será este Outono

o nosso

velho gato?

 

75.

O pai diz:

“Vou plantar nabos” –

choveu.

 

76.

Enquanto o gato se limpa

o sol regressa

depois da tempestade.

 

77.

Se as emigrantes

me quisesses tanto em Agosto

como as moscas em Setembro.

 

78.

Uva a uva

haiku a haiku

moscatel e Yosa Buson.

 

79.

Terra lavrada

depois da chuva –

que perfume antigo.

 

80.

A água que acabou de cair

bebe-a o gato

do balde.

 

81.

Sabendo do Inverno

tomo ao lado das romãs

o sol de Setembro.

 

82.

Sentado sobre a pedra

trazida da ribeira

também eu passo.

 

83.

Nos ramos secos do carrasco

os líquenes

continuam a luta.

 

 

 

Agosto-Setembro 2021

 

Torre de Dona Chama, Cidões, Porto

 

João Bosco da Silva

 REVISITAÇÃO

para o Boschkowski Agora que viveu o poeta pode voltar para trazer-se de volta pelos montes pela floresta para observar os seus passos trouxeram-no de novo ao quarto da infância à cama de rede aos amigos que não morreram às noites intermináveis onde mais do que uma estrela lhe veio trazer o sono O poeta viveu e voltou para respirar por entre os trilhos e as cascatas adivinho do vento e das palavras veio ao seu domínio para tocar folhas e raízes e escrever de volta que tudo estará bem enquanto ele puder aqui vir o poeta volta ao pasto para o piquenique dos elementos. Ricardo Marques


 

Reminiscências Sobre Granito

 

Dentro de um lagar que os séculos tornaram obsoleto

E cujas origens a memória popular tornou mito,

Relembro com uma antiga amante uma noite

Que caminha para uma década, foi tudo tão breve

E intenso como um acidente que os desencontros

Do destino tornaram fatal, quando nos entregamos

Totalmente a alguém numa noite, com a voracidade

De pele rasgada sobre granito e eternidade,

Não temos tempo de ser infelizes e é apenas isso

Que levamos até a memória nos falhar, dez anos

Não são nada e uns segundos levam tudo.

 

25.08.2021

 

Lagar dos Mouros

 

João Bosco da Silva

sábado, 4 de setembro de 2021


 

O Cheiro do Mosto

 

Que triste o doce cheiro do mosto,

Quando tudo partiu e apenas restam

Os últimos dias vazios, o tédio e a espera

Mais verdadeira e certa, a do fim,

Aos poucos as luzes apagam-se,

Na mesa ninguém mais se espera,

Restam as estrelas com a sua ilusão de calor,

Que brilharão à geada com a mesma força,

Que triste o doce cheiro do mosto,

Lembra a necessidade da morte,

A importância da sesta para encurtar os dias.

 

Torre de Dona Chama

 

29.08.2021

 

João Bosco da Silva

 

À Beira deste Mesmo Rio

 

“Estamos todos habituados a morrer de quando em quando e tão pouco a pouco que o que acontece é que estamos cada dia mais vivos.Infinitamente velhos e infinitamente vivos.”

Roberto Bolaño

 

À beira deste mesmo rio, vinte anos atrás,

Levei ao fim a luta de um velho com o seu destino escorregadio,

O choupo onde me encostei foi cortado e vendido ou queimado,

Outros tomaram o seu lugar e fingem uma mesma sombra,

Como a água a mesma e eu o mesmo, apesar do pó

Acumulado em duas décadas, sobre um espírito que despertava,

Ainda tão próximo daquela felicidade sem nome da infância,

Sinto na pele, que não voltará a ser jovem, a picada familiar

De um moscardo, de uma geração tão distante daquela segura era,

Não irei reler aquele livro, trago comigo outro escrito por quem

Há vinte anos vivia ainda, a ninguém é dado o tempo que merece,

Há quem mereça a eternidade das árvores, há quem não mereça sequer

A breve vida de um moscardo que a minha palma esmaga,

Tudo é injusto e inútil, contudo, à beira deste rio, quase parece

Possível tocar a eternidade, num lugar onde se deixou a felicidade

E ainda é possível regressar, outro, vinte anos depois.

 

Cidões

 

12.08.2021

 

João Bosco da Silva

 

Milénios na Memória

 

Pergunta-me como foi a minha passagem de ano no final do milénio,

Estranhamente, não me lembro de grande coisa, as uvas passas,

Com um pouco de espumante ao que chamávamos champanhe,

Uma ligeira espectativa de que se calhar um pagão ou um apocalipse

Do mesmo calibre, pouco depois da meia-noite, cama

E acordar em mais um dia no mesmo mundo, muito melhor

Me lembro da passagem de ano seguinte, o baile de finalistas

Daquele ano, na extinta discoteca da vila, a primeira nota de cinco euros,

Os últimos escudos e os primeiros finos, as raparigas tão apetecíveis

E a fome tão grande, acabar a noite a comer tostas mistas

Enquanto o amigo das férias, já em casa, enfiava a manga

Da camisola do pijama numa perna e adormecia, naquela noite gelada,

Que não fosse por isso, mais parecia uma longínqua noite de Agosto,

Lembro-me que me tinha apaixonado pela primeira vez no verão,

Parece que antes disso, passar aquele nível nas nuvens do Sonic 2,

Era como dar um beijo atrás da carrinha do pão à emigrante francesa

Que partia no dia seguinte, o mundo afinal, tinha acabado naquele verão.

 

10.08.2021

 

Ar

 

João Bosco da Silva