terça-feira, 26 de julho de 2022

 

Batido pelo Sorriso do Passado

 

O passado olhou para mim e sorriu, não me reconheceu,

Durante aqueles segundos deixei de saber como andar,

Como se tivesse sido atingido na cara por uma fralda

Embebida em éter, fingi então receber uma mensagem,

Enfiei a mão ao bolso e lá consegui reencontrar o ritmo

E acelerar o passo em direção a mais um cabelo branco,

Lembro bem aquela noite no barco, aquele cheiro a madeira

Apodrecida pelo álcool, podia hoje a vida ser outra,

Eu outro, o amor de outra loira, podia nunca ter dado

O meu coração a comer a hienas obesas, perder tempo,

Podia, ela tímida, pediu à amiga que viesse falar comigo,

Eu quase jovem, nunca o fui, agora morro há quase dois anos,

Apelido famoso nos canais de desporto, eu que na altura

Só via beats, tanto amor à morte, a madeira do barco,

O mesmo barco, anos mais tarde, a trazer-me aqui,

O mesmo cheiro no quarto quando sinto o meu hálito,

Hoje o passado olhou para mim e não me reconheceu,

Quem seria aquele velho, ela casada com um americano,

Também envelhecerá, a amiga com o filho de um marroquino

Que afinal era um príncipe das arabias com temperamento,

Enquanto caminho até casa, depois de reaprender a andar,

Com uma Le Ragnaie na mochila de outra vida, penso,

Que apesar do vazio é melhor estar aqui, chateado com

O céu nublado, confiante que cada vez terei menos certezas

E que existe uma certa liberdade em estar batido, não passar do chão,

Ter o passado a olhar para mim sem me reconhecer.

 

26.07.2022

 

Turku

 

João Bosco da Silva

segunda-feira, 25 de julho de 2022

 

Piri-Piri

 

Onde esperam aqueles amores que nunca foram,

Todos os olhares que não deram tempo ao sorriso,

Os cadáveres de tudo o que poderia ter sido,

As noites intermináveis, os medos que as seguem,

Passam os anos, um saco cheio de partidas,

Alguns nomes, a maioria um leve toque dos sentidos,

Entretanto envelhece-se, separações, o filho com o pai,

O cão com o ex-namorado, a casa vazia e as horas

Queimadas num trabalho mal pago com ares de heroísmo,

Gostam de pintar de heróis quem roça a escravatura,

Quem se sacrifica por pouco, pelo conforto de muitos,

Parece impossível que haja sempre espaço para mais

Um nome na promessa do esquecimento,

E eis que parte, os dedos quase se tocam numa despedida

De amantes que nunca foram, uma noite quase, nada.

 

25.07.2022

 

Turku

 

João Bosco da Silva

sábado, 16 de julho de 2022

 


Ruínas sobre Azul

 

Abstraído do almoço

o gato persegue

a libelinha.

 

O mar em Rodes

a tua íris

quando acordas.

 

Do antigo estádio Olímpico

fazem os lagartos

casa.

 

No antigo estádio

em vez de aplausos

o cantar das cigarras.

 

No silêncio das pedras

toda a glória

da carne que pareceu.

 

Que medos e sonhos

terão vivido

entre estes muros arruinados?

 

Nos montes nus

ecos de pedra

dos que foram.

 

Noite de tempestade

numa rua deserta –

ela levanta a saia.

 

Longe da juventude

os meus olhos –

muitas folhas caíram.

 

Criança ontem

amanhã aqui

pequena ruiva britânica.

 

Licor de mástica

xarope de cenoura

de minha mãe.

 

Rodes-Chalki, Junho 2022

quinta-feira, 14 de julho de 2022

 

Como Levar Porrada

 

Tanto especialista em tudo e eu tão contente quando

Depois de lavar os dentes sinto a boca fresca sem sangue,

Aperto os cordões e saio de casa, mesmo tendo folga,

Respondo a um estranho mais perdido que eu,

É por ali, dou-me conta que gosto de mais uma uva

Rara da Grécia, da qual nunca tinha ouvido sequer falar,

Tanto especialista em tudo, que vidas levarão,

Sabendo tanto, duvido que descubram seja o que for,

Todos os dias uma caderneta de cromos completa, e eu

Contente, depois de finalmente ler o Marquês de Sade,

Por exemplo, eu feliz por ser o último a saber.

 

14.07.2022

 

Turku

 

João Bosco da Silva

 

Aquela Noite em Montmartre

 

És jornalista, perguntam-me no Café des 2 Moulins,

Eu no quarto charnonnay, moleskine aberto sobre a mesa,

A procurar uma linha que me ligue ao que fui,

Tentar fazer sentido com a passagem do tempo

E o continuar a ser o mesmo, sem o ser, a tua presença,

Por exemplo, quando não te vejo há uma década,

És jornalista, quando no dia anterior, no Le Wepler,

A empregada me perguntava com sotaque francês

Se era um actor e eu a julgar que tinha adivinhado

A minha linha de trabalho, digo que não, antes fosse, talvez um dia

E eu, espero que não, lá vieram as ostras e o Sancerre,

Quem lhe teria sido, nunca o saberei, agora jornalista,

Digo-lhe que não, que sou espião russo,

Dizem-me que todos são bem-vindos, afinal é Paris,

Montmartre, por fim confesso que, aquele caderninho,

É o alívio para a minha solidão constante, mesmo num café cheio,

Uma das duas perdeu logo o interesse, mesmo sem mencionar

Ser poeta, que é quase o mesmo que ser sozinho,

Num bar cheio, com um caderno a desenterrar o passado

Em páginas vazias, um jornalista da mitologia pessoal,

Tinha deixado a página numa vírgula, logo me tornei inconveniente,

Parte a segunda também, desiludida, no canto em silêncio,

Era tudo o que me imaginavam, até me revelar real, apenas

Um rabiscador solitário, entrando na noite, um copo atrás do outro.

 

14.07.2022

 

Turku

 

João Bosco da Silva

 

Janela Aberta numa Noite de Tempestade

 

Tornou-se isto na espera por uma catástrofe definitiva,

Tudo passa na língua com a textura de um vazio absoluto,

Mais um crepúsculo, mais um gole, mais uma ejaculação,

Tudo no vazio, a cópia de uma cópia estropiada pelo tédio,

Continuar como quem é levado, moribundo, a um autocarro,

Que nos levará de volta ao cansaço, depois do fim, de tantos fins,

Gastam-se as ilusões em copos vazios e mesmo assim,

Caminha-se com o glorioso peso de todos os fracassos,

Verões que prometeram ser infernos e se tornam em dilúvios,

Pandemias que terminam em guerras e novos medos,

As balizas enferrujam, as giestas tomam conta do campo da bola,

Quantos segundos serão dedicados por dia às glórias pequenas,

Relembrar na água que escorre numa janela o mais precioso tempo,

As mãos vazias, tão grandes na ilusão do seu alcance,

Um poeta, como se nisso houvesse alguma salvação,

O resto já se sabe, nas entranhas o tumultuoso emaranhado

De tudo o que foi perdido, que só a perdição derradeira aliviará,

Entretanto abre-se mais uma garrafa de vinho, antes da partida

De mais alguém, do próximo trovão ou da própria derrota final.

 

14.07.2022

 

Turku

 

João Bosco da Silva