segunda-feira, 26 de junho de 2023

 


Tumba de Nireu

 

à Tatiana Faia,

 

Junto à tumba de Nireu, encostada à sombra

Das paredes de pedra branca, dorme uma ovelha,

Dizem que se trata da tumba do rei de Simi,

A seguir a Aquiles, o segundo homem mais belo

Do exército grego, pretendente à mão de Helena

E do resto, nascido de ninfa, terá morrido

Numa ocasião ou noutra, dependendo de quem

Lhe cantou a vida, a ovelha é certa, mas o sono

É absoluto e obvio o ácido que se infiltra nas narinas

E desperta os olhos para uma desconcertante verdade,

À sombra das paredes cinzentas, a ovelha jaz morta,

Um manto de lã sobre ossos e carne ressequida,

Poderá ser ou não a tumba do rei Nireu, mas

É certamente o túmulo de uma anónima ovelha.

 

18/06/2023

 

Mar Egeu

 

João Bosco da Silva

 


Intersecionismo não-Vanguardista

 

Queria poder falar-te das minhas viagens às ilhas gregas

No início dos anos noventa, de como tudo era verde

E próximo do sonho, queria poder falar-te da outra vida

Que vivi paralela a esta, que surge quando me sento

Com este corpo e sinto saudades daquilo que não vivi

Com esta carne, um pouco como as viagens dos heterónimos

De Pessoa, serão aquelas viagens menos reais do que

Este sol que me queima esta pele, que naqueles anos era

Pequena e pálida e tímida, iluminada por uma luz

Que atravessa uma garrafa verde de Snappy no Minho,

Rodeado por um cheiro a quartel da Guarda-Fiscal e eucalipto,

Naquele tempo havia mais pescadores, nem tudo era

Para inglês ver e a vida era mais que meia-dúzia de dias

A fingir serenidade e azul interminável, um dia falar-te-ei

Dessas viagens no início dos anos noventa às ilhas gregas.

 

17/06/2023

 

Symi

 

João Bosco da Silva

 


“Perfect Day”

 

No tímpano vibra-me Lou Reed, a língua abraça-ma

Um branco de Santorini, guardei dois poemas teus

Para os últimos crepúsculos, dizem que amanhã

Vai estar tempestuoso, pode ser que nem possa

Sair da ilha e nunca me preocupou tão pouco

Uma tempestade, é pena que só já tenha

Dois poemas teus e uma garrafa de assyrtiko

Por abrir, no frigorífico ao lado das anchovas,

Mas ninguém é feito de açúcar e sempre te posso

Pedir mais um, ainda tenho meio farrapo de alma

Com que te pagar, o resto troquei na juventude,

Ao desbarato, por chapéus ridículos e outras futilidades,

Valeu-me ao menos a carne, que hoje petisco

Na memória, todos aqueles olhos que me sentiram vivo,

Chega mais um barco, será que amanhã ainda cá estará?

 

Symi

 

16/06/2023

 

João Bosco da Silva

domingo, 25 de junho de 2023

 




Sesta à Beira-Mar

 

Com dedos leves, as ondas afrouxam o nó,

Que desfeito nos deixa cair no sono,

O vento sopra no gargalo da meia garrafa de cerveja,

Já quente da lenta vontade, a sede a estas horas

É outra, tudo parece ao alcance de um olhar descuidado

E coberto por uma névoa azul, o corpo quente

Subitamente se ergue da toalha e desaparece

Num acordar fresco, há sonhos piores,

Há companhias idênticas, há amores que ovos fossilizados

À espera do interesse de poetas ou paleontólogos,

Fiquei na dúvida, estive acordado ou quase,

Digo para mim mesmo saudades três vezes

E nem de ti me lembro, apenas uma canícula azul

E o vazio que as ondas apagam de silêncio.

 

Nimborio

 

16/06/2023

 

João Bosco da Silva

sábado, 24 de junho de 2023

 


Um Dia

 

para a RNG,

 

Um dia levo-te à terra onde crescem batatas

Sobre o esquecimento dos cães envenenados

Pela claudicação que dura mais que a maioria

Dos amores eternos, nada encerra um dia perfeito

Como o áspero tanino nas gengivas cansadas

De esperar o fim de um último beijo que só

Na memória confusa habita, sem aviso prévio,

Depositar a semente estéril na estrela do mar

Oxigenada por selins em regime sub-zero,

Se pudesse dava-te uma mão, uma sardinha até,

Um dia não são dias e há noites que valem

Bem mais que tanto durar, levar a vida a criar

Vincos nas bentas e a temer a chegada

Evidente da prata temporal, um dia mostro-te

Como escondo as lágrimas nas que viscosamente

Percorrem o copo, como quando há umas horas

Sem aviso prévio, depois me pedem um bocado

De papel para passar no poema quente,

Este ano as batatas têm sido bem regadas,

Vais ver que à noite, só os cães dos vizinhos ladram,

Até as uvas amadurecerem ao luar, um dia

Também te explicarei isso, enquanto a cera

Da vela verter uma lágrima quente como a evidência

Do desejo à luz universal da distância.

 

Symi

 

13/06/2023

 

João Bosco da Silva

terça-feira, 20 de junho de 2023

 


Conversa com Poeta Distante

 

“o homem aponta o brilho instantâneo do mar

ali mesmo se desfaz a eternidade”

Raquel Nobre Guerra

 

A estas horas, não é tinta que traça estes versos,

É a última luz do Sol que este dia verte sobre o azul

E os sonhos desfeitos pelas mãos do homem,

No meu copo não há senão gotas dessa luz

Que os deuses nos permitem a troco de quem sabe,

Tudo, mas tudo é apenas uma cortina que cobre

Por um momento o Sol, que logo se revela eterno

Nos nossos olhos pequenos e o corpo que é carne

E promessa, de pestilência e podridão,

Recebe estes pedaços de eternidade, mais sagrados

Que o pão duro de todas as variadas religiões

E outros sem sentidos, o sol, não tarda, recolhe-se

Para preparar mais um dia, como se todo o futuro

Coubesse atrás dos montes desta pequena ilha,

O ar arrefece e no ar as memórias da juventude

Que nos trouxe ao sublime pleno deste instante.

 

Symi

 

13/06/2023

 

João Bosco da Silva

 

O Fim da Inocência

 

Julguei-me poeta, mas afinal não passava de uma remelosa

Musinha de província, com o brilho do esmalte da juventude

Ainda na pele, não era mais que um fanboy que fumava cigarros

Sentado no passeio à porta do restaurante antes do almoço,

Com o bolso cheio de certezas rabiscadas num sismo que

Ninguém consegue sentir, isto fui até que os cabelos brancos

Rasparam o esmalte e o brilho tornou-se em pó e cansaço

E as palavras o mesmo arremesso baço que pouco alcança,

Quando é ao vazio das estrelas que se almeja, julguei-me poeta,

Afinal apenas carne, criada ao ar livre, que devia ter sido abatida

Antes de perder a frescura.

 

Turku

 

07/06/2023

 

João Bosco da Silva